A guerra dos piedosos
por Bruno CarmeloParaíso é um filme estranho. Meio drama de guerra, meio relato religioso; ora apoiado nas facilidades do cinema do século XXI, ora dependente da estética do cinema de cem anos atrás. A intenção é articular a história de três pessoas na França invadida pelos nazistas: a condessa Olga (Yuliya Vysotskaya), presa por abrigar judeus em sua casa, o investigador da polícia francesa Jules (Philippe Duquesne) e o oficial nazista Helmut (Christian Clauss). Cada um relata à câmera suas histórias, seus medos, suas paixões.
Esta espécie de entrevista, ou confidência íntima ao espectador, sintetiza o estilo particular do longa-metragem. A textura da imagem é impecavelmente nítida e lisa, digna da tecnologia digital mais moderna, enquanto a tela próxima do quadrado (1:1,37), a fotografia em preto e branco e as atuações exageradas, em close-up, lembram os clássicos do cinema mudo, quando as atuações eram expressivas até demais, às vezes compensando pelo reforço do significado imagético o que o som ainda não permitia explicitar. Vysotskaya, em especial, é digna herdeira de Lillian Gish, atriz fetiche de D.W. Griffith, encarregada de transmitir em volume máximo o desespero e o martírio.
Quando o diretor Andreï Konchalovsky aproxima a sua câmera do rosto de uma criancinha desesperada após ver o pai levar um tiro na cabeça, estamos sem dúvida diante de um cinema redentor, moral (ou moralista), que pretende retratar os horrores da guerra ao mesmo tempo em que perdoa os “homens maus” por suas boas intenções: Jules pretendia estuprar Olga, mas era um bom pai e funcionário dedicado; Helmut não questiona o genocídio, porém ajuda Olga, por quem está apaixonado. Esta compensação oferecida ao longo do filme – mas negada na conclusão involuntariamente cômica – confessa enfim a vocação cristã que o filme tentava evitar ao longo de toda a narrativa.
É possível ler a guerra pelos olhos da História e também pelos olhos da religião, mas a fusão dessas duas vertentes torna-se o elemento mais problemático de Paraíso. A porção laica do público pode ter calafrios diante desta leitura cristã da Segunda Guerra, na qual a estética realista é inserida perigosamente em um discurso típico da fábula. Konchalovsky observa seu trio de personagens com olhar piedoso, por se colocar na posição de Deus – impossível uma escolha mais arriscada, arrogante e ingênua do que essa. Assim, sem capacidade de distanciamento, ele não consegue analisar a origem dos problemas, as complexidades políticas nem as consequências sociológicas. A guerra, neste filme, é feita apenas de amor e de ódio, de perdão e de redenção.
Talvez por isso o drama tenha agradado tanto aos espectadores que buscam nas narrativas bélicas um cenário universal de sofrimento humano, ao invés de um momento histórico repleto de particularidades. O dispositivo soa sempre falso - vide os cadáveres em fotos coladas a álbuns delicados, a luz que entra na janela e banha a cara dos oficiais nazistas, os judeus famintos roubando uma mulher morta, sobre uma pilha de entulhos que lembra um cenário teatral. Este é um cinema de boas intenções, de grandes mensagens, mas irresponsável no retrato da Segunda Guerra Mundial e anacrônico em sua concepção do cinema. Ao menos, busca alguma sensibilização à saga pouco conhecida da comunidade russa na França da época - a quem o filme é dedicado.