Okja não é um filme que pode “mudar o mundo” – aliás, nenhum filme é capaz disso. Mas ele consegue, através de sua incrível verossimilhança e humanidade, colocar o espectador para pensar de uma forma muito profunda e tocante sobre as questões de recursos e formas de garantir a plena alimentação da população mundial atualmente e futuramente – sendo um veiculo para expor ideias e problemas que isso pode causar, obviamente, com mais peso sobre os animais – e, mesmo que você não tenha a mínima vontade de se tornar um vegetariano, esta produção da Netflix (inclusive, o primeiro filme original desta plataforma de streaming a concorrer no Festival de Cannes) dirigida e roteirizada pelo talentoso cineasta sul-coreano, Jooh-Ho Bong (Memórias de Um Assassino), poderá despertar um sentimento de indignação ou pena pelas maneiras que os animais são tratados para se tornarem o alimento que a grande maioria da população faz questão de ter em seus pratos todos os dias.
Bong tem plena consciência de que um exagero nas colocações dos temas que a produção aborda poderiam facilmente conduzi-lo ao piegas ou melodrama. Sendo um hábil diretor (e roteirista), ele consegue conduzir esta história disposta a mostrar o lado perigoso das grandes corporações alimentícias e o que as pessoas deveriam ao menos tentar fazer para mudar a forma como os animais são tratados – tema extremamente atual, levando em conta que até aqui no Brasil vem sendo bastante debatido – em relação aos abusos durante os rodeios, por exemplo. O diretor é inteligente em mostrar os problemas dos dois lados (as supostas pessoas que maltratam e as supostas pessoas que defendem), deixando parte de sua critica social e comportamental para uma decisão do espectador – esses lados, aliás, são revelados, curiosamente, por alguns personagens propositalmente caricaturais, mas que atingem muito bem a ideia de mostrar o verdadeiro caráter de alguns tipos de nossa sociedade com relação aos cuidados com os animais.
Okja aborda a história de uma enorme corporação que vende carne animal, que, supostamente, teria encontrado um tipo de porco raríssimo no Chile, capaz de crescer bem mais que o normal – batizando-o de “super porco”. Sob as ordens da líder da empresa, a excêntrica Lucy Mirando (Swinton), eles conseguem 26 desses porcos e os entregam para o equivalente de fazendeiros ao redor do mundo – uma deles, no interior da Coréia do Sul, sendo batizada pela simpática Mija (Seo-Hyun Ahn) – Misha na tradução oficial, por motivos óbvios – com o nome de Okja, tornando-se, depois de dez anos, na maior porca dos 26 espelhados pela empresa, o que garante que ela seja transportada para Seul, onde será exibida como a maior porca do mundo e, consequentemente, visto como a solução dos problemas para erradicar a fome no mundo. Inconformada pelo destino que a simpática super porca terá nas mãos dos empresários inescrupulosos, Mija decide ir atrás de Okja – encontrando, no meio do caminho, uma equipe de proteção aos animais, liderados pelo ativista Jay (Paul Dano).
Ainda que tenha em mão um tema extremamente sério, Okja é uma bela fantasia de aventura também. E as soluções do diretor para mostrar os membros da equipe de ativistas protetores de animais é um grande acerto, especialmente em demonstrar como eles não querem ferir nenhuma pessoa para impedir que animais sejam feridos – como ao usarem bolas de gude para fazer policiais não os seguirem ou como se preocupam em não agredir o meio ambiente – isso fica evidente no integrante Blond (Henshall), que chega a deixar de comer para não “degradar a natureza”, fazendo-o se sentir mal – numa obvia critica ao exagero na hora de defender causas ambientais, talvez – ou a postura extremamente correta com relação à lealdade e direitos humanos com relação aos integrantes do grupo, visto no Jay de Paul Dano, em ótima composição, mostrando, também, um lado mais agressivo que este tipo de movimento geralmente diz não ter, talvez porque o mundo (ou a sociedade, mais precisamente) acabe por exigir.
O filme também ganha pontos pela atuação (sempre) impecável de Tilda Swinton (também produtora do longa), que vive as irmãs gêmeas Lucy e Nancy Mirando – garantindo que a forma com que desenvolva a primeira seja extremamente condizente com a forma que as empresas atuais muitas vezes se comportem diante de questões ambientais – naquele suposto falso moralismo, tentando dizer que está fazendo o bem, quando na verdade está sendo extremamente maligna, no caso aqui, aos animais – e, com a segunda, Tilda desenvolve perfeitamente a figura de uma pessoa disposta a passar por cima de qualquer coisa para garantir o futuro de sua multinacional – aliás, Okja não faz uma critica somente à empresários inescrupulosos, mas, também, as pessoas como um todo, geralmente mais ocupadas com o que a opinião pública pensa – como pessoas fazendo snap durante a bagunça que Okja causa em um shopping coreano ou no personagem de Jake Gyllenhall, o excêntrico (e falso) apresentador de um programa de tv que mostra a vida dos animais, que diz amar os bichos mas na verdade está mais preocupado com sua reputação – inclusive, o único problema do filme é justamente Gyllenhall, por conferir um exagero infundado em seu personagem, especialmente no forçado tom de voz que tenta inserir – e nunca imaginaria que algum dia apontaria que a única falha de um filme seria sua participação.
Mas, ainda tratando do elenco, devo admitir que quem mais me sensibilizou (e garantiu algumas lágrimas ao final) foi a garotinha Seo-Hyun Ahn, com sua relação incrivelmente espontânea e real com Okja – aliás, ela é o ponto mais humano do filme, em meio aos personagens caricaturais criados para exemplificarem pontos de vista sobre o tema abordado. O que ainda ajuda neste enfoque sobre a relação de amizade (de fato) entre a garota e o animal é a criação digital extremamente convincente dos movimentos e pele de Okja – repare como sua pele cinzenta parece “escamosa” quando Mija passa suas mãos sobre ela ou nos movimentos realistas, parecendo misturas de um porco com um atrapalhado elefante – sem falar em seus olhos castanhos e assustadoramente “humanos” – tornado Okja em uma das criaturas criadas por computador mais memoráveis já vistas num filme – é tão gracioso que chega a dar vontade de chorar só de pensar que algo ruim pode acontecer com tal bichano.
Ainda apoiado por um ritmo de aventura dinâmico para o público mais jovem – mas com o uso de alguns palavrões, que dão um tipo de “toque” para notarmos que estamos diante de uma situação que poderia ser real – com uma abordagem precisa e enxuta sobre um tema adulto, atual e muito relevante, Okja é um filme de encher os olhos – capaz de sensibilizar ao menos um pouquinho qualquer pessoa que ainda tenha alguma duvida de que os animais sofrem demais até chegarem as nossas mesas de jantar – e deixar na cabeça de todos a seguinte pergunta: causar dor e sofrimento à algum ser vivo só para satisfazer outro é algo justo? Esperamos que o futuro da humanidade nos traga alguma esperança quanto a isso.