Festa na laje
por Francisco RussoPor mais que tenha no currículo sucessos do porte de A Dama do Lotação (4º maior público do cinema brasileiro em todos os tempos) e Os Sete Gatinhos, Neville D'Almeida ficou longos 18 anos ausente dos filmes de ficção. Consequência não apenas das dificuldades em filmar após a extinção da Embrafilme, mas especialmente em se adequar à realidade da Lei Rouanet, onde boa parte do financiamento vem do próprio mercado, que costuma escolher projetos mais palatáveis - algo que o diretor nunca buscou ser, sempre escancarando perversões e falsos pudores.
Em meio a tantas dificuldades, o projeto que enfim conseguiu tirar da gaveta foi a adaptação cinematográfica da peça teatral "A Frente Fria que a Chuva Traz", de Mario Bortolotto - que, não por acaso, interpreta o segurança. Uma escolha condizente com a carreira do diretor, pelo tom incisivo e provocador que mantém do início ao fim, ao retratar uma juventude que acredita que o mundo está a lhe servir. Endinheirada e sem escrúpulos, ela vive pelo prazer a todo instante e uma felicidade constante, mesmo que esta seja ilusória. Não importa. Que venha a próxima dose, e de preferência rápido! Porque a vida é uma festa, que precisa ser aproveitada o quanto antes.
O início de A Frente Fria Que a Chuva Traz, o filme, logo ressalta os dois contrastes que serão trabalhados durante todo o longa-metragem: a laje localizada em plena favela com uma vista exuberante; os jovens endinheirados e os representantes da massa assalariada, que se equilibram entre a necessidade do dinheiro pago, o desprezo pelo modo com que agem e um certo deslumbre pela vida que levam. Tivessem eles dinheiro, agiriam diferente? O filme não diz, mas levanta a questão. Neville e Bortolotto (o autor) pretendem esmiuçar estas relações azedas existentes entre ricos e pobres, mas sem levantar questões panfletárias sobre classes sociais. O objetivo aqui é oferecer um retrato, escroto e até sádico, sobre um estilo de vida. Simples assim.
Conceitualmente, há vários aspectos interessantes no longa-metragem. A denúncia sobre a miséria humana de uma juventude endinheirada é um deles, bem como a consciência forçada de Amsterdã, personagem de Bruna Linzmeyer. Na verdade, ela é a única que difere daquele mundo de corpos brancos e sarados, sempre enfiados em roupas de grife, cuja personalidade é idêntica. Amsterdã também se droga, também se embebeda e faz parte da turma... mas é pobre e, como tal, precisa se sujeitar a humilhações e caprichos para manter o vício. A consciência de sua posição neste jogo sórdido rende um punhado de frases cínicas que, além de cutucar feridas, demonstra o talento de uma atriz que ousou sair de sua zona de conforto. Entretanto, não é dela a melhor atuação em A Frente Fria que a Chuva Traz. O posto pertence a Johnny Massaro e seu sorriso sempre cínico, avaliando todos à sua volta.
Entretanto, nem tudo são flores. Por mais que tenha méritos consideráveis, não apenas pelo conteúdo entregue mas também pela sequência de panorâmicas envolvendo a favela e a laje, A Frente Fria que a Chuva Traz é um filme irregular em relação ao elenco. Vários diálogos soam artificiais, em parte por uma certa entonação exagerada, o que também acontece quando a narrativa deixa a própria laje, resultando em situações fake envolvendo os moradores locais - a cena do estupro é o melhor exemplo, com uma violência contida que jamais convence. Estranha também o fato deste ser o filme mais "comportado" de Neville d'Almeida, conhecido justamente pelo cinema marginal, devido à opção em externar a violência através da verborragia. Mais uma vez a sensação de teatralidade se faz presente, causando uma artificialidade na proposta de um grupo de jovens endinheirados indo e vindo a todo instante em uma favela carioca. Fora a metáfora ingênua que encerra o longa-metragem, envolvendo Amsterdã, e o tom "filosófico de botequim" envolvendo os novos tempos que estão prestes a chegar.
De certa forma, é fácil não gostar de A Frente Fria que a Chuva Traz. A realidade de Alisson e seus amigos afugenta e provoca asco, pelo modo com as pessoas são tratadas e representadas. Entretanto, o ponto forte do filme é justamente este. Em sua volta ao cinema, Neville entrega um universo odioso e irritante, que abusa do discurso vazio para se justificar, mas que faz parte da sociedade atual. É como denúncia de uma realidade torta que o filme deve ser encarado, por mais que também possua problemas que atrapalhem seu desenvolvimento narrativo.