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    A Glória e a Graça
    Críticas AdoroCinema
    2,0
    Fraco
    A Glória e a Graça

    O avesso da delicadeza

    por Bruno Carmelo

    Quando foi anunciado o projeto sobre uma mulher com uma doença terminal reencontrando sua irmã travesti, foram notadas algumas reticências na imprensa, principalmente pela escolha de Carolina Ferraz, uma mulher cisgênero, para interpretar a travesti. Diante do resultado final, no entanto, a prótese na boca da mulher cis para parecer masculina constitui o menor dos problemas.

    O diretor Flávio Ramos Tambellini deseja construir um drama delicado, sobre a aceitação das diferenças e a possibilidade de novas configurações de família – duas ideias louváveis – mas o faz a partir de um texto fraco. A doença de Graça (Sandra Corveloni) é anunciada de modo tão brusco que despertou risos na sala de cinema; a sua aproximação com a irmã Glória ocorre de modo rápido demais; a caracterização da mãe neohippie de valores conservadores – cuja filha se chama “Papoula” – beira a paródia. Tudo isso é coroado por diálogos didáticos, explicando o que a imagem não consegue mostrar por si só.

    A construção superficial de personagens prejudica a verossimilhança na trama. O único motivo para Graça procurar a irmã com quem perdeu contato há 15 anos é o fato de não ter mais ninguém para cuidar de suas crianças, mas logo se descobre a existência de uma amiga próxima, descrita como “quase uma irmã”, que mora ao lado e conhece as crianças muito bem. O bullying caricatural sofrido por Papoula na escola parece extraído de comédias como Meninas Malvadas, e a ínfima importância dada a uma atriz coadjuvante transexual deixa a impressão amarga de que a personagem integra o elenco apenas por cota de representatividade, apesar do bom trabalho da atriz.

    A direção de fotografia chama a atenção. Talvez a equipe tenha decidido que Graça pratica a cromoterapia, mas o lar onde se passa grande parte da trama remete a um buffet infantil: a cozinha tem luzes verdes profundas, um quarto é totalmente amarelo, o outro é azulado, o corredor tem luzes vermelhas... Mesmo nas cenas externas, alguns efeitos aquáticos e as cores extremamente saturadas dão a impressão de estarmos num universo fantástico, edulcorado, muito distante das dificuldades palpáveis de se enfrentar uma doença ou o preconceito social.

    Tambellini filma suas cenas multicoloridas com os enquadramentos mais fechados possíveis, tendo como limite os rostos das duas atrizes. A estética claustrofóbica impede que os espaços importantes da casa, da escola e do próprio Rio de Janeiro exerçam uma influência na tristeza e na solidão das duas mulheres. Quando Glória e Papoula encontram um novo amor – solução fácil para sugerir um final feliz – a câmera se limita aos planos de conjunto, com ambos lado a lado, nos terços exatos do quadro. A rigidez das imagens transparece a falta de criatividade da mise en scène.

    A representatividade, sim, merece ser questionada no projeto. A cada novo filme sobre transexuais ou travestis interpretadas por atores e atrizes cis, perde-se uma nova oportunidade de dar protagonismo a estas figuras marginalizadas. Se a intenção é defender a inclusão social, por que não começar com o próprio elenco? Por mais que Carolina Ferraz efetue um trabalho competente – e que Jeffrey Tambor, em Transparent, ou Jared Leto em Clube de Compras Dallas tenham se saído muito bem como mulheres – ressente-se a falta de os projetos botarem em prática o discurso que defendem. A prótese na boca de Carolina Ferraz, para parecer mais masculina, incomoda pela necessidade de relembrar que ela nasceu com corpo diferente. Por que é tão importante insistir na diferença entre “aparência de mulher” e “aparência de homem”?

    Outro aspecto do respeito à identidade de gênero incomoda em A Glória e a Graça. A travesti ouve da irmã alguns dos piores preconceitos – sugerindo que ela tenta “empurrar goela abaixo” sua identidade, ou que vai educar um garoto como se fosse mulher – mas a personagem nunca responde às acusações, e o roteiro simplesmente as ignora. Glória precisa repetir o tempo inteiro que é honesta e trabalhadora, como se fosse uma espécie de compensação por ser travesti. O discurso “travesti, porém trabalhadora” é análogo ao preconceituoso “pobre, porém honesto”. A crítica à prostituição também mereceria maior aprofundamento: o roteiro sugere que as moças venderiam seus corpos não pela falta de oportunidades, mas por uma espécie de carência afetiva ou instabilidade emocional.

    Rumo à conclusão, o roteiro reforça o tom melodramático, criando uma série de reviravoltas e coincidências difíceis de acreditar, mas que funcionam na intenção de extrair lágrimas do espectador. O filme deseja mostrar que a irmã travesti pode ser uma mãe perfeita para Papoula e Moreno, e o faz em detrimento da mãe biológica, ainda viva, que perde importância no roteiro enquanto a tia das crianças já assume as funções de cuidados diários. É uma pena que um projeto com teor humano tão complexo tenha recebido um tratamento pouco cuidadoso. Boas intenções nunca foram suficientes para fazer um bom filme.

    Filme visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2016.

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