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    Torre das Donzelas
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Torre das Donzelas

    A representação do trauma

    por Bruno Carmelo

    O imaginário da opressão durante a ditadura militar costuma ser associado à figura de homens, tanto na condição de carrascos quanto de vítimas. “A guerra não tem rosto de mulher”, lembrava a escritora Svetlana Aleksiévitch a respeito das soldadas na Segunda Guerra Mundial. O documentário Torre das Donzelas pretende mostrar que a repressão militar, tipicamente masculina, foi direcionada a milhares de mulheres, e que tanto seu sofrimento quanto sua resistência adquiriram um contorno particular devido a questões de gênero. A experiência de um coletivo masculino diferente daquela vivida por um grupo feminino graças a fatores sociais e políticos. Esta é a tese desenvolvida de modo orgânico pela diretora Susanna Lira.

    As personagens deste projeto são mulheres idosas com passagem pela “Torre das Donzelas”, apelido dado ao presídio Tiradentes. Tratadas como terroristas pelo governo e pela imprensa, estas militantes foram encarceradas durante anos, sofrendo toda forma de agressão física e psicológica. Entre elas, uma prisioneira ilustre: Dilma Rousseff, cujo depoimento confere um peso singular ao documentário. A ex-presidenta expõe a experiência no cativeiro, as torturas, o machismo do procedimento. Ela alterna as lembranças graves com algumas alegres, com uma franqueza admirável. Dilma e dezenas de outras mulheres relembram este período com um misto de horror e nostalgia: por um lado, este foi o símbolo de um período que deixou traumas permanentes, por outro lado, serviu para criar laços de amizade e fortalecer convicções políticas.

    A cineasta parte de um procedimento arriscado para retratar as memórias de suas entrevistadas. Primeiro, pede para que desenhem num quadro negro a geografia exata da Torre – as celas, escadas, corredores, janelas. Em seguida, combina as ilustrações para recriar, num cenário, o espaço mais próximo possível do presídio onde ficaram. As personagens adentram o espaço fictício com um misto de estranhamento e familiaridade. Algumas vão às lágrimas, outras se sentam confortavelmente nos beliches. O documentário poderia ser taxado de sadismo, por proporcionar o retorno a um espaço que lhes causou tanta dor. Felizmente, este caminho é evitado: as personagens parecem estar cientes e dispostas a adentrar esta representação do presídio. A narrativa privilegia então a montanha russa de lembranças, costuradas por uma montagem de som e imagem muito eficaz.

    As histórias jamais se repetem, nem constroem um caminho linear demais: Lira encaminha sua narrativa pelo fio das memórias afetivas. Ela permite tanto a descrição das agressões quanto a lembrança de vivências sobre a sexualidade – muitas mulheres olharam o próprio sexo pela primeira vez na prisão – e mesmo o aprendizado de línguas estrangeiras. O único revés do belo roteiro se encontra na recriação fictícia das histórias com atrizes jovens. O recurso, literal demais, surge de modo abrupto, não se desenvolve a contento, e jamais possui a força das histórias contadas pelas protagonistas. A ficcionalização do documento serve apenas de ilustração didática demais para um documentário que se bastaria com seus ágeis depoimentos e com a exploração do presídio-cenário.

    A Torre das Donzelas, sugere o filme, foi transformada em comunidade, em coletividade, graças à força das mulheres encarceradas. “Nós continuamos revolucionárias”, lembra uma delas. Dilma completa que não tem vergonha alguma em ter sido presa, muito pelo contrário. Lira evita transformar as suas personagens em meras vítimas, tampouco em heroínas inatingíveis, destacando histórias singulares, palpáveis, realistas. Os grandes fatos – as torturas, o dia do encarceramento ou da saída – se misturam com momentos cotidianos, como os pratos cozinhados ou as roupas utilizadas. Por fim, o sistema elaborado para rompê-las apenas reforçou seus ideais e a certeza de que lutaram do lado certo da história.

    Filme visto no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2018.

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