Há tempos o espectador brasileiro não senta numa poltrona de cinema para degustar um filme que não seja de comédia pastelão ou dramas melancólicos, salvo algumas exceções. E, desde Tropa de Elite I e II, uma obra não chama tanta atenção quanto ao primeiro e grandioso filme de Daniel Rezende: Bingo - O Rei das Manhãs.
Rezende foi montador do Oscarizado Cidade de Deus. Trabalhando como montador, ainda prestou serviços a Diários de Motocicleta, Tropa de Elite, Árvore da Vida de Terrence Malick, entre outros. Com toda essa experiência, Rezende entrega um filme impactante nas excepcionais atuações, no ritmo imprimido na narrativa e nos arcos dramáticos.
Bingo é a cinebiografia romantizada de Arlindo Barreto, ex-palhaço Bozo que comandava programa matinal no SBT na década de 1980. O grande boato da época já era que Bozo realmente entrava loucão ao vivo e alucinado ancorado por drogas líquidas e pó. Com esse interessante gancho o Diretor resolveu contar tal história alterando o nome dos personagens para evitar complicações em relação a direitos autorais. Bozo vira Bingo, Globo é a Mundial, Show da Lulu é o Show da Xuxa, Barreto é Augusto Mendes e por aí vai. Só Gretchen é Gretchen.
Mendes/Bingo é interpretado com excelência por Vladimir Brichta. Foram dois meses de imersão total do papel. Ele é um pai amoroso, ator de pornochanchada que inquieto busca as luzes do sucesso numa novela das oito. Graças a ajuda da ex-esposa Angélica (Tainá Müller) consegue uma ponta, mas não satisfeito ruma a outra emissora e é quando se depara com testes para o papel de um palhaço que terá programa próprio.
O retrato familiar que se faz de Mendes antes da fama é de muita ambição e amparo na mãe. Martha Mendes (Ana Lucia Torre) que já foi uma uma atriz reconhecida vive nos dias atuais ofuscada pelo esquecimento. O alívio desta pressão é centrado no filho Gabriel Mendes (Cauã Martins). Com o garoto, as cenas são de momentos em que se vê um pai devoto e amoroso.
O filme transita com muita fluidez dentre estes arcos. A boa edição divide cada ato de forma bem pensada, o que faz o público se envolver cada vez mais com a história. O elenco está afinadíssimo e o trabalho de direção de atores é evidente em diversas cenas. A produtora do programa Lúcia (interpretada por Leandra Leal) e o câmera Vasconcelos (Augusto Madeira) estão ótimos. Todos possuem seus momentos, sem excessos. Atenção ao trabalho de ambientação da cidade de São Paulo dos anos 80 e de elementos da época que preenchem com riqueza o filme. E isso é explorado em determinada cena ao se falar na importância do uso do telefone no programa ao vivo.
No decorrer da obra, o Diretor faz o público entrar na mente de Mendes/Bingo. Seja pelo seu desejo, emoção e concentração. Ele faz isso de duas formas: a mais sutil e interessante ocorre antes de sua aparição em um picadeiro, quando ele está se concentrando. Exatamente aí, a tomada em primeiro plano está focada em outra situação. Ao fundo Mendes. É quando o som abre só para ele que menciona seu grito de guerra. Esse preparo aparece várias vezes durante o filme. É como que nesse instante houvesse a transformação do homem em personagem. Mas em algum instante isso falhará.
Há cenas realmente dignas de aplausos. Como exemplo o plano sequência em que Bingo atravessa do camarim até o palco central do programa e tem suas interações sem cortes enaltecendo o pensamento rápido do personagem, sua espontaneidade a forma de falar e olhar como que sempre desafiando seu interlocutor. Bingo é isso: um canalha, um sedutor, uma diversão adulta com algumas crianças ao redor.
Mesmo todos sabendo o final, o conteúdo traz uma obra densa, interessantíssima e que comandada por um Diretor capaz torna-se impecável. Aliás, o filme começa com uma simbologia utilizando a brincadeira das mãos contra a luz. Com uma simples iluminação é possível fazer arte, sem precisar mostrar o rosto. E em uma passagem no filme, Mendes deixa isso claro: o palco não precisa ser o da TV para que ele possa brilhar.
*Domingos Montagner aparece como tutor de Mendes na história. Esse foi o último trabalho do ator no cinema. Ele realmente foi palhaço em vida.