Diretor de A Bruxa cria universo rico e cheio de horror em adaptação amorosa de clássico do cinema
por Aline PereiraMais de um século se passou desde que Nosferatu nasceu como uma adaptação de Drácula para se tornar um dos maiores clássicos do cinema - no gênero e fora dele - e quando veio a notícia de que a obra ganharia um novo remake, ouvir o nome de Robert Eggers envolvido no projeto foi um alívio – apesar de breve, o histórico do cineasta é inquestionável em qualidade e, talvez mais do que isso, em um tipo de assinatura que me parecia o ótimo para recontar uma história como essa. E era mesmo. Nosferatu de 2024 é uma adaptação viva e é tão feroz, quanto melancólica.
Neste terror gótico acompanhamos a obsessão de Conde Orlock (interpretado por um irreconhecível Bill Skarsgård, sobre quem falo mais adiante) pela jovem e doce Ellen (Lily-Rose Depp). Seguindo a premissa do filme de 1922, o vampiro passa a assombrar a vida de Ellen quando recebe a visita do noivo dela, o agente imobiliário Thomas Hutter (Nicholas Hoult), que viaja a Transilvânia em busca de fechar negócios com o conde e sua suntuosa propriedade. Antes tarde do que nunca, Hutter percebe que seu novo cliente é, na verdade, uma criatura mortal.
Antes mesmo de a história começar a ganhar forma, o remake de Nosferatu causa impacto pelas imagens poderosas. A primeira cena, que nos adianta o tom do tormento que será vivido por Ellen, é de congelar a espinha. Senti a atenção fisgada imediatamente e, junto a isso, uma certa confusão sobre o que significava aquela introdução no sentido de absorver o terror apresentado. Satisfação é a palavra para definir os primeiros minutos da experiência.
Não só na abertura, mas durante a jornada completa, a composição visual como um todo, da fotografia aos objetos de cena, é um destaque e quem já estiver familiarizado com a obra de Robert Eggers certamente vai se lembrar de A Bruxa, longa de 2015 que colocou o diretor no radar de muita gente. Ainda que esteja, é claro, contando uma história de fantasia, há uma realidade esquálida, sóbria e triste que borra a fronteira entre o terror propriamente dito e uma espécie de romance de época.
Na minha memória de A Bruxa e outras produções de Eggers, como O Farol e O Homem do Norte, o clima fúnebre e a inspiração gótica saltam como uma grande qualidade – que também está presente, talvez ainda mais intensamente, em Nosferatu.
Em termos de narrativa, a diferença que mais chama a atenção em relação ao filme mudo de 1922 é o tempo geral dado para os personagens, a começar por Ellen. Um dos pontos altos do filme de 2024 é a expressão da influência mental que o vampiro causa nela. O longa mergulha mais detalhadamente nas visões que a protagonista tem e no crescente desequilíbrio que a aproximação de Conde Orlock causa nela, de forma que o desfecho é bem-vindo com uma boa sensação de temor e urgência.
As aflições de Ellen ficam mais expostas, assim como o efeito que o vampiro causa nela – resultado também da presença inquietante de Lily-Rose Depp em cena. A filha de Johnny Depp que estrelou a controversa série The Idol surge como uma figura que é uma vítima atormentada, mas que também parece carregar um grande buraco negro dentro de si. Difícil de decifrar e também muito dividia entre o aspecto sobrenatural e o realismo da trama: o vampiro existe naquele universo, mas o sofrimento de Ellen também tem muito a ver com a própria solidão e seus conflitos, que não são enxergados, e por vezes subestimados, pelos outros.
Com ela, temos também uma formada por Aaron Taylor-Johnson (Trem-Bala) e Emma Corrin (Deadpool & Wolverine), que interpretam um casal de amigos de Ellen e Thomas, que ficam encarregados de fazer companhia a Ellen e vigiar seu súbito mal-estar e é claro que os dois também são afetados pelas aparições do Conde Orlock.
Entre eles, a principal questão é a unidade da família: quando a situação da protagonista começa a se agravar, o casal Anna e Friedrich Harding também veem ruir as próprias vidas dentro de casa. Este ponto, aliás, talvez seja o único grande deslize do filme: falta força nestas interpretações para que os personagens sejam marcantes a ponto de querermos realmente acompanhá-los ou conhecê-los mais detalhadamente. Em muitos momentos dos dois em tela, senti que estava apenas esperando a trama voltar a Ellen, Thomas e Orlock.
O grupo principal de coadjuvantes se completa com Willem Dafoe, que já trabalhou com Eggers em O Farol e que, em Nosferatu, interpreta um cientista ocultista chamado para tentar resolver o problema das possessões de Ellen e acaba se aproximando dela. No caso desta figura, em específico, gostaria de ver mais: sabemos que Willem Dafoe faz muito mesmo quando o material é escasso, mas o personagem tem uma passagem que parece branda demais em momentos cruciais para a trama.
A campanha de divulgação do filme antes da estreia parece ter poupado a imagem do vampiro e fez bem: a expectativa e o impacto de encontrá-lo pela primeira vez em Nosferatu funciona muito bem. Mais de 100 anos depois do filme original, não faltam recursos, é óbvio, para modernizar e lapidar a imagem do vilão. O primeiro ponto é que se você não sabe de antemão que conde é Bill Skarsgård, é muito possível que nem o reconheça. Diferente de It: A Coisa, em que pelo menos algumas expressões entregavam o rosto real do ator – Nosferatu o faz desaparecer no papel e constrói uma criatura assombrosa.
Robert Eggers costuma falar bastante sobre o intenso processo de pesquisa que faz para compor seus filmes e fica visível que não foi diferente com Nosferatu, não só no aspecto do mundo que criou, mas no monstro. Bom trabalho de efeitos visuais aliado a referências de como eram pessoas reais da época e de como a figura mitológica do vampiro era representada na arte.
Com isso, há uma mistura de aspectos clássicos que geram a sensação de reconhecimento em quem está assistindo com características que o tornam original e enigmático – do formato dos dentes à postura, movimentos corporais e o tom de voz gravíssimo. É como se a presença de Orlock se espalhasse pelo ambiente. Um bom resultado para tornar o vilão não uma figura única isolada, mas a personificação de um ideal de horror que parece inesgotável, incansável e invencível. E se é para trazê-lo de volta, que seja assim.