Aquarius é um ensaio sobre uma mulher, brasileira, de classe média, entrando na terceira idade – Clara (Sônia Braga). Clara está vivendo no momento presente, a pressão para vender seu apartamento, última unidade habitada do edifício, adquirido por uma grande construtora que pretende construir um novo empreendimento em seu lugar. Somente pelo perfil da personagem principal, o filme já seria absolutamente original e inovador no panorama do cinema brasileiro. Clara não é uma “vovó de bengala”, como o cinema tradicional teima em pintar uma mulher de 65 anos. Ela é ativa, jovial, antenada e centrada. Provavelmente tudo isso tenha atraído Sônia Braga a aceitar o papel. Que é também o seu maior desafio como atriz. Ela domina absolutamente o filme. Todos os outros são secundários, incluindo o seu desafeto Diego. Embora o diretor tenha tido o cuidado de escolher muito bem cada intérprete, por mais coadjuvante que seja o personagem, o que dá vida e verdade a todos.
Ao contrário do que toda polêmica possa ter insinuado, Aquarius não é um filme de crítica social ou política em primeiro plano. O filme fala sobre o Brasil, e por óbvio, expõe alguma de suas mazelas. Mas, acima de tudo, é um filme elegante e sensível sobre temas universais como velhice, morte, memória, família, tudo mais ligado ao íntimo e pessoal. A personagem Clara nunca sofre pressão real, no sentido do embate, por parte da construtora que representa seu oponente. Há mais a presença, o incômodo da construtora que vai aos poucos tomando conta do edifício, lhe causando aborrecimentos calculados. Uma “festinha” privê no andar de cima que deixa “vestígios” na escada, uma camionete que bloqueia a saída de seu carro da garagem, estranhos que se aglomeram na escada. Kleber Mendonça gosta de brincar com a expectativa do espectador, e vez por outra insinua um confronto que nunca acontece: como na cena em que vemos Clara ser seguida por dois estranhos.
A real ameaça ela sofre quando é abordada na praia pelo filho de um antigo vizinho, que lhe diz mais ou menos o seguinte: “Você me conheceu quando eu era criança. Mas não me conhece adulto”. Há grande inteligência nesta anotação do diretor, que parece dizer que o familiar, o conhecido, o passado nem sempre é garantia de conforto e segurança. Afinal, a própria filha de Clara cobra dela a saída do prédio e cenas mais tarde, demonstra ressentimento pela ausência da mãe em sua infância – ao que é repreendida pelo irmão mais velho de forma notável, sem dizer uma única palavra. A relutância de Clara se explica não como um capricho, mas como uma valorização da memória física, cuja prevalência em relação à simples memória e registro virtual ela tão bem explica quando é entrevistada, e se refere a um dos discos de sua enorme coleção de vinis.
Aquarius é muito rico em sua construção de personagem (seus desejos, suas contradições, suas culpas) e na abordagem entrelaçada de tantos temas. O diretor Kléber Mendonça utiliza com maestria os recursos próprios do cinema – como o corte e a edição de som - para criar uma tensão crescente, e a música como comentário mais do que apenas trilha sonora (aproveitando a “deixa” que a personagem principal é uma antiga crítica musical). Destaco 2 cenas: o pesadelo de Clara, e a sequência que lhe antecede quase imediatamente, aquela em que a família revê antigas fotos, quando são interrompidos pela empregada de Clara, lembrando que ela tem também sua foto para mostrar.
Não é de todo descabido fazer um paralelo entre a resistência de Clara em vender o apartamento e a realidade do próprio cinema atual, onde diretores como Kléber Mendonça Filho ainda insistem em fazer filmes de conteúdo e relevância frente ao domínio quase absoluto dos filmes blockbusters, que só visam o lucro, e nem palidamente se aproximam de algo que se possa chamar de arte. Aquarius não é um filme perfeito mas também não é um filme banal. O diretor pernambucano precisa considerar uma premissa clássica do cinema que vale tanto para cenas de sexo quanto para cenas de violência. Muitas vezes nos filmes, aquilo que não é mostrado por completo, mas apenas sugerido, causa muito mais impacto. Além disso, só uma pequena ressalva. Não me agradou completamente o final do filme, onde uma “carta na manga” de Clara busca resolver o impasse, mas sem nos dar nenhum detalhe – o que torna a solução fácil e artificial. Embora as últimas palavras de Clara e o corte final da cena sejam irretocáveis.