Em 2014, Malévola foi uma boa surpresa, ao desmitificar a antiga e clássica história da Bela Adormecida – com várias versões em livros centenários e uma famosa adaptação de Walt Disney em 1959 (considerada, por muitos, como uma das melhores animações do cinema) – a versão estrelada por Angelina Jolie invertia o protagonismo do conto original, ao colocar a vilã do titulo como uma personagem ambígua e multidimensional – fugindo com esperteza da previsível versão original – além de retirar todo o possível conteúdo machista da trama – tanto Malévola quanto a Aurora de Elle Fanning não necessitavam de “príncipes encantados” para serem felizes – a relação entre madrasta e enteada era a melhor coisa do longa, dando dinâmica e emoção a obra – evidentemente que o sucesso comercial do filme nos traz a está continuação, após cinco anos, período onde o estúdio continuou sua ideia de produzir versões live action de seus sucessos em desenho – A Bela e A Fera, Alladin e o O Rei Leão (entre outros) lotaram os cinemas, o que praticamente garantiu está sequência, que mesmo se apoiando nos pontos positivos do primeiro filme da bruxa gente boa de Jolie, escorrega por se apegar exageradamente a clichês e soluções previsíveis.
Embora condizentes até com o clima de fantasia clássico dos contos de fadas, tais clichês não deixam de soar incômodos na concepção da grande maioria dos novos personagens apresentados pelo roteiro de Linda Woolverton, Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue (talvez muitas mãos para um projeto só) – Malévola – Dona do Mal conta agora como a personagem-título e sua enteada Aurora, rainha do Reino dos Moors, vivem longe dos humanos do Reino de Ulstead – mas, quando Aurora aceita o pedido de casamento do príncipe Phillip (Harris Dickinson), Malévola fica apreensiva, pois teme que sua filha de criação deixe ela e seu reino – já que o Rei John (Lindsay) e a Rainha Ingrith (Pfeiffer) querem o casamento dos dois – após um desentendimento em um jantar no castelo do Rei, Malévola nota como a Rainha Ingrith tem interesses obscuros no relacionamento de Aurora e Phillip, o que faz com que um conflito entre os seres de Moors e os humanos de Ulstead possa começar.
A trama e a direção de Joaquim Ronning (do fraco Piratas do Caribe – A Maldição de Salazar) tentam inserir as partes do conto clássico que não apareceram no filme passado – como o envolvimento de Aurora com Phillip – em tempos em que muitos filmes tentam explorar com mais profundidade histórias românticas, não deixa de ser ingênuo (demais) ver um casal apenas trocar alguns olhares e se dizerem “perdidamente apaixonados” – mesmo tendo um ponto positivo novamente com a boa atuação da sempre expressiva Elle Fanning, o relacionamento de Aurora e Phillip não deixa de soar superficial desde o inicio – ainda mais que Harris Dickinson acaba se mostrando um ator limitado, com pouquíssimas expressões faciais – existe ainda um uso irregular do humor e do habitual “ataque de fofura” das criaturas concebidas digitalmente – mesmo que trazendo excelentes efeitos (criaturas como o porco-espinho e os seres com cabeça de cogumelo são muito bem trabalhados em suas animações), a intenção de mostra-los como adoráveis do inicio ao fim acaba por soar forçada – e o humor das três fadas madrinhas (vividas pelas atrizes Imelda Stauton, Juno Temple e Leslie Manville) soa artificial a maioria do tempo – com exceção de um momento onde há uma clássica referência a animação de 1959 – e o efeito para diminuir o corpo das atrizes nem sempre convence, causando um incomodo pela desproporção em certos pontos – mas, por outro lado, personagens como Diaval de Sam Riley se tornam bons coadjuvantes – e não apenas pelos toques de humor.
Mas, continuando o que disse mais acima, o maior problema da produção reside no excesso de clichês que insere nos personagens novos – se isso é visto com menos intensidade em Phillip, não é o que acontece com a Ingrith da grande Michelle Pfeiffer – sua personagem é tão simplória e forçada que irrita mais pela falta de personalidade do que pelo fato de ser a vilã do filme – fazendo com que a atriz tenha que apenas fazer caras e bocas tortas de reprovação para todos a sua volta – nunca vi uma vilã de fantasia da Disney tão sem graça – uma criação preguiçosa e sem o menor pingo de multifacetação – ficando pior quando o roteiro tenta inserir as motivações da personagem – que, evidentemente, é uma representação do fascismo e do preconceito racial e social de algumas pessoas.
Alias, Malévola – Dona do Mal tem diversos temas de fundo, que aparecem por quase todo o desenrolar de sua trama – as questões sobre empoderamento feminino, criticas ao extremismo ideológico, preconceito e racismo – presentes quando o Rei John, Aurora e Phillip sonham com a união dos povos dos dois reinos – um tipo de coisa que reflete uma ingenuidade do roteiro, mas, ao mesmo tempo, não deixa de soar como uma boa intenção – isso também ocorre na concepção das criaturas que surgem para ajudar Malévola, no caso, os antigos conterrâneos dela, que vivem escondidos do resto do mundo por medo – um jeito interessante de representar algumas minorias que são injustamente acuada pela sociedade – além de ser um artificio usado para tentar colocar a personagem de Jolie em uma busca por suas origens e paz interior – que só não soa melhor representada devido a alguns diálogos banais e convencionais vindos da interação entre ela e o personagem do sempre expressivo Chiwetel Ejiofor (a trama faz força-lo a dizer coisas como “nunca esqueça quem você é”) – existe ainda o personagem de Ed Skrein, representado um pensamento mais agressivo de quem acaba sendo oprimido – algo exemplificado de forma bem rasteira no terceiro ato, inclusive.
Se Angelina (que também é uma das produtoras do filme) não recebe um bom tratamento com relação a exploração da origem de sua personagem e raça, ao menos, o roteiro mantém a dinâmica da relação “mãe e filha” entre ela e Aurora – o que, praticamente, não deixa o filme descambar para um desastre – juntando isso ao olhar e as expressões contidas da excelente atriz, tornam (ainda) Malévola em uma personagem interessante , ambígua e multifacetada – não só por ser uma vilã que virou “mocinha”, mas pela maneira verdadeira como demonstra afeto pela personagem de Fanning – transformando a relação das duas em algo realmente tocante.
Visualmente belo – tanto a criação dos seres digitais (que já citei) e a construção dos cenários, são verdadeiros delírios visuais – é notório o realismo para a criação do castelo do Rei John e os detalhes da floresta de Moors, tanto o mato quanto as águas dos rios – e o mundo das criaturas da raça de Malévola merece elogios por misturar diversos elementos, como desertos, florestas ou até neve – um trabalho requintado do design de produção – e a fotografia é sempre clara e colorida, ajudando a misce-en-scene, principalmente quando acontecem as cenas de ação (em uma quantidade bem maior do que no filme anterior).
Mesmo que sofrendo por um segundo ato um pouco arrastado, está continuação se salva pela força das atuações de Jolie e Fanning, que se sobressaem ao roteiro repleto de clichês – clichês estes que, assim como os mais famosos contos de fadas já escritos, nem sempre atrapalham o resultado final – acaba sendo o suficiente para ser um passatempo leve e simpático – como as fantasias devem ser.