Os limites da intimidade
por Bruno CarmeloO diretor Bruno Jorge decidiu fazer um documentário sobre sua própria vida, mais especificamente, sobre a experiência da paternidade. Nos meses que anteciparam o nascimento da primeira filha, ele filmou as dúvidas e inseguranças de si mesmo e da esposa, a fotógrafa Fernanda Preto. Entram em cena discussões sobre o posicionamento do berço, a melhor maneira de fazer o parto, o papel do homem nos cuidados com o bebê.
A proximidade com o tema pode representar uma facilidade de produção – afinal, todo o material humano e prático encontrava-se à disposição – mas, por outro lado, constitui uma grande dificuldade ética. Até onde filmar? O que mostrar, o que esconder? O que faz parte do domínio da verdade e do realismo, e o que representa uma invasão de privacidade, uma violação da dinâmica do casal? A busca por estes limites representa o maior trunfo de O Que Eu Poderia Ser Se Eu Fosse.
O projeto funciona melhor em sua vertente metalinguística. Bruno Jorge revela suas dificuldades em captar algumas imagens, assume diante da câmera o desconforto de incluir imagens de si mesmo. Do mesmo modo, acrescenta reclamações da esposa quanto ao uso de certos trechos e à exposição da mãe de Fernanda e da irmã desta, já falecida. O cineasta permite a convivência entre todas essas dúvidas, trocando o valor cinematográfico da precisão pelo valor da sinceridade, da entrega de si mesmo.
Como retrato da esposa e da maternidade iminente, o filme ameaça perder seu foco. A morte da cunhada do diretor traz algumas das imagens mais belas, mas também desconectadas da premissa inicial. O confronto com a sogra e as sessões de fotografia da esposa trazem ótimos momentos de naturalidade feminina, entretanto, ameaçam levar a narrativa a rumos distantes da intimidade do casal. Do mesmo modo, a humildade de Jorge não o isenta de responsabilidade sobre sua própria imagem: seria interessante que ele não tivesse retirado tantos trechos de si mesmo da montagem final, permitindo a permanência de outras inseguranças no filme.
Mas talvez estes questionamentos fossem inevitáveis num projeto que busca justamente suscitar discussões sobre limites éticos da autoimagem. Neste sentido, o resultado enxuto de O Que Eu Poderia Ser Se Eu Fosse cumpre amplamente o seu papel, com direito a cenas belíssimas, bem enquadradas e elegantemente montadas. Por reunir preocupações humanas, cinematográficas e estéticas num único projeto de dimensões simples, o filme se sobressai em meio ao crescente subgênero nacional dos documentários autobiográficos.
Filme visto na edição paulista da 19ª Mostra de Tiradentes, em março de 2016.