Wendy (Dakota Fanning, de A Vida Secreta das Abelhas) é uma jovem com Síndrome de Asperger que vive em uma instituição na cidade de San Francisco dirigida pela médica Scottie (Toni Collette, de A Hora do Espanto). Apesar do autismo, Wendy tem um emprego e consegue ser independente em vários aspectos de sua vida. Grande fã do seriado de TV Jornada nas Estrelas (1966-1969, série clássica), está a escrever um roteiro para um concurso da série organizado pelo estúdio Paramount Pictures.
Wendy tem esperanças de poder voltar a morar com sua irmã, Audrey (Alice Eve, de O Corvo), mas esta reluta porque teme que Wendy, mesmo sem intenção, possa machucar a filha recém-nascida.
Por descuido, o roteiro de Wendy não é postado no correio e ela decide ir por conta própria até Los Angeles para entregar seu roteiro pessoalmente. Ao saberem do ocorrido, Audrey, Scottie e seu filho, Sam (River Alexander, de Coquetéis e Adolescentes), vão em busca da jovem.
Em entrevista concedida ao Dr. Drauzio Varella, o respeitado neurologista Dr. José Salomão Schwartzman diz que o autismo “(...) nada mais é do que um tipo de comportamento que se caracteriza por três aspectos fundamentais. Primeiro: são crianças que parecem não tomar consciência da presença do outro como pessoa. Segundo: apresentam muita dificuldade de comunicação. (...) Terceiro: tem um padrão de comportamento muito restrito e repetitivo” .
O Dr. Schwartzman classifica o autismo em três graus: “Há o indivíduo portador das características citadas em grande proporção e com deficiência mental grave; o grupo com o tipo de autismo (...) com comprometimento moderado e os indivíduos com Síndrome de Asperger (...), que são autistas com linguagem e intelecto preservados”.
Deste último grupo, o Dr. Schwartzman define como os “(...) que apresentam as mesmas dificuldades que os outros, mas numa medida bem reduzida. São verbais e inteligentes. Tão inteligentes que chegam a ser confundidos com gênios, porque são imbatíveis na área do conhecimento em que se especializam. (...) Entretanto, se lhe fizermos uma pergunta simples - Quantas pessoas vivem na sua casa? -, ele se comporta como estivéssemos falando grego".
A premissa que guia Tudo Que Quero - pessoas com problemas mentais e/ou emocionais - é bastante recorrente no cinema com filmes como Os Dois Mundos de Charly (1968), O Homem Terminal (1974), Sentimentos Que Curam (2015) e, talvez o mais famoso de todos, Rain Man (1988) que, de todos essas produções listadas, é a mais semelhante ao objeto desta crítica*.
Do mesmo modo, Tudo que Quero é filme que retoma um gênero bastante popular pelos espectadores de cinema em geral: os "Road Movies" ("filmes de estrada"), no qual os protagonistas literalmente põem o pé na estrada em uma viagem que torna-se um evento transformador em suas vidas como, por exemplo, em Diários de Motocicleta (2004).
Há também uma terna e sincera homenagem ao seriado de TV e saga do cinema Jornada nas Estrelas/ Star Trek. O que começou como um programa semanal de ficção-científica, tornou-se um culto nerd e geek e transformou-se em um fenômeno cultural sem fronteiras.
De posse dessa premissa, da retomada do gênero "Road Movie" e da homenagem a Star Trek, o veterano cineasta e roteirista Ben Lewin (O Favor, o Relógio e o Peixe Muito Grande) faz um trabalho de direção um tanto convencional, mas, ainda assim, correto e seguro, usando bem os recursos de que dispõe e sem apelar para demagogia, pieguice e sentimentalismo no sentido "veja-como-ela-sofre", embora eu ache que poderia ter sido um pouco mais incisivo ao abordar o transtorno neurológico de Wendy. Entretanto, consegue arrancar boas performances de seu elenco.
Dakota Fanning atua desde os cinco anos de idade - começou fazendo comerciais de TV. Tornou-se internacionalmente conhecida na película Guerra dos Mundos (2005), dirigido por Steven Spielberg (The Post: A Guerra Secreta) e conseguiu fazer o mais difícil para uma atriz-mirim: continuar atuando na idade adulta. E, o melhor de tudo, atuando bem.
Sua performance como uma portadora de Síndrome de Asperge é bastante sensível e realista e consegue reproduzir de modo convincente o comportamento típico de um portador dessa mesma síndrome - olhar parado, rotina rígida, memória fotográfica, dificuldade em expressar e lidar com os sentimentos, etc. - gerando cenas inesquecíveis como, por exemplo, quando ela demonstra aos nerds o seu conhecimento de Star Trek de modo incrível, infalível e imbatível tal como descrito pelo Dr. Schartzman.
Faço aqui um parênteses para falar um pouco sobre o seriado que tanto fascina os portadores da Síndrome de Asperger quanto os nerds e os "normalóides".
Em sua autobiografia Eu Sou Spock, o ator e cineasta Leonard Nimoy (1931-2015), o eterno intérprete do vulcano mais amado do universo, disse não saber o motivo do sucesso do seriado-saga que o tornou famoso, mas especulava:
"Primeiro, Star Trek oferecia segurança para uma geração que crescera assustada com o fantasma da guerra nuclear. (...) Ao mesmo tempo, a nossa paranóia em relação à União Soviética estava em seu clímax (...).
E em meio a toda essa paranoia e terror, havia uma mensagem clara de esperança na forma de Star Trek, uma mensagem que parecia dizer 'Sim, vamos sobreviver à era atômica. Vamos fazer contato com vidas inteligentes em outros planetas e eles serão nossos amigos, e não nossos inimigos. Juntos, vamos trabalhar pelo bem comum'.
...) A sociedade estava vivendo uma mudança muito rápida (...). E, em meio a esses tempos de incerteza, havia a tripulação de Star Trek, totalmente confiável e incorruptível; pessoas que diziam a verdade e, acima de tudo, comportavam-se eticamente, com dignidade, compaixão e inteligência".
A paixão de Wendy pela série criada pelo produtor Gene Rondenberry (1921-1991) reflete-se no seu relacionamento com a sua médica e terapeuta Scottie - com eficiente atuação de Toni Collette. Uma boa sacada do filme é deixar o espectador na dúvida sobre o verdadeiro nome da terapeuta, pois, como todo "Trekkie" (fã de Star Trek) sabe, Scottie é o apelido do engenheiro-chefe da nave estelar Enterprise, Montgomery Scott - vivido nas telas pelos atores James Doohan (1920-2005) e Simon Pegg (franquia Missão Impossível).
Curiosamente, Alice Eve trabalhou em um filme da saga: Além da Escuridão - Star Trek (2013), no qual interpretou a Dra. Carol Marcus. Sua atuação como Audrey, irmã de Wendy, é boa, mostrando que ela vai além de um rosto bonito. Já a presença de River Alexander justifica-se apenas na cena em que seu personagem explica para a mãe um dado de Star Trek. Fora isso, é perfeitamente dispensável, embora o jovem ator demonstre talento.
O roteiro de Michael Golamco (série Grim: Contos de Terror), baseado em peça de sua própria autoria, consegue ir além do mero teatro filmado e faz com que entremos na imaginação de Wendy na qual ela e pessoas ao seu redor sejam transfiguradas nos personagens de Star Trek.
Não poderia escrever este texto sem falar da bela e suave trilha sonora do brasileiro Heitor Pereira (Se Eu Ficar), que acaba por se encaixar bem à trama. Por fim, se a fotografia de Geoffrey Simpson (Menino Satélite) não é excepcional, ainda assim consegue mostrar as belezas da Califórnia, especialmente de San Francisco.
Tudo Que Quero é um filme enternecedor, com uma mensagem edificante, afirmativa e de empoderamento pois, ao contrário do que muitos pensam, pessoas com autismo ou transtornos semelhantes podem muito bem conviver em sociedade, serem trabalhadoras, úteis aos seus semelhantes, imaginativas e criativas a ponto de produzirem obras de arte que não ficam nada a dever às dos "normalóides". Como Wendy demonstra, estão audaciosamente indo onde ninguém jamais esteve.
*O personagem Raymond Babbitt de Rain Man, protagonizado por Dustin Hoffman (Kramer vs Kramer) - em uma performance que lhe valeu o Oscar de Melhor Ator -, é portador da Síndrome de Savant, também conhecida como "síndrome do sábio" ou "síndrome do idiota-prodígio". Embora tenha pontos em comum, é diferente da Síndrome de Asperger (n. do a.).