Resenha do Filme “Suprema” (On the Basis of Sex
Por Marco Dias
A banda norte-americana No Doubt possui uma música chamada “Just a Girl”, cujo refrão, em transcrição literal, diz o seguinte:
I’m just a girl - Sou apenas uma garota
Guess I’m some kind of freak - Acho que sou meio doida
‘Cause they all sit and stare - Pois todos sentam e me olham
With their eyes - Com aqueles olhos
I’m just a girl (…) - Sou apenas uma garota (…)
Oh … I’ve had it up to here! - Oh … Eu estou de saco cheio!
Oh … am I making myself clear?. - Oh … Estou sendo clara o suficiente?
A música, lançada em 1995, nunca se fez tão presente quanto atualmente, onde, cada vez mais, a mulher possui um lugar de fala nunca antes permitido em uma sociedade arraigada de preceitos patriarcais, ainda há um certo olhar torto e uma concepção de inferioridade que prevalece nos mais diversos meios sociais – e que gera a sensação de perda da paciência retratada na letra da música.
Nesse cenário, Ruth Bader Ginsberg é uma mulher inabalável, defensora da igualdade entre homens e mulheres, que precisou batalhar, dia após dia, contra tudo e contra todos, em uma sociedade marcada pela gritante autonomia do patriarcado, para conseguir impor sua voz. Ela, portanto, é o mais próximo que se tem de uma heroína da vida real, e em tempos de filmes de super herói sendo produzidos e lançados semanalmente, nada mais justo do que adaptar a história dela para as telonas. E é isso que o filme Suprema (do original On The Basis of Sex) faz com maestria.
A história de Ruth Bader Ginsberg, interpretada pela atriz britânica Felicity Jones, começa com um plano bastante impactante, ao mostrar a nossa protagonista envolta em um emaranhado de homens, todos em direção à entrada da faculdade de direito de Harvard. Ruth se destaca, não só por se a única mulher nessa sequência, bem como por utilizar uma roupa azul, em pleno contraste com os homens ao seu redor, todos de terno em tons de preto, marrom ou cinza.
Ruth é uma das nove mulheres que ingressaram em Harvard para cursar direito, motivo pelo qual o Reitor da faculdade, Erwin Griswold, interpretado pelo ator norte-americano Sam Waterston, se vangloria e as convida para um jantar em sua casa, a fim de ouvir as razões que as levaram a “ocupar”, em suas palavras, “as nove vagas destinadas aos homens”.
As cenas seguintes reforçam que a sociedade norte-americana dos anos 50 guardava, em seu cerne, uma discriminação e um preconceito de gênero muito fortes. As mulheres eram vistas como seres inferiores aos homens, simplesmente pelo fato de existirem. Termos que estão em alta hoje em dia, como mansplaining, manterrupting e gaslighting são recorrentes na trama, tudo para evidenciar o tratamento destinado às mulheres naquela época. Ruth recebe olhares tortos, é interrompida durante suas explanações, não possui vez e, apesar de seu brilhantismo, sempre é preterida por qualquer homem ao seu redor.
O seu marido, Martin D. Ginsburg, interpretado pelo ator americano Armie Hammer, é um homem fora dos padrões nesse cenário proposto pelo filme. Apesar de, aparentemente, parecer um homem ideal, estudante brilhante, marido perfeito, pai dedicado, que jamais realizaria qualquer atividade doméstica, este se revela um verdadeiro Rodrigo Hilbert dos anos 50 (se é que a comparação aqui é válida, pois Martin possui um grau de intelecção e fascínio muito maiores do que o artista da Globo).
A vida de Ruth ganha um grau a mais de dificuldade quando Martin descobre que está com câncer de testículo. Ruth, então, tem de se desdobrar para assistir suas próprias aulas, as aulas do marido, cuidar da casa, dos filhos e do marido, para que este não perdesse o curso. Mesmo assim, conseguiu se manter como a melhor aluna da sua turma.
Com um currículo de dar inveja a vários advogados do século XXI (se ela possuísse uma conta no lattes, certamente seu currículo teria páginas e mais páginas de realizações acadêmicas), Ruth não conseguia encontrar emprego como advogada em nenhum escritório, por ser mãe, judia e, principalmente, por ser mulher. Isso, contudo, não faz com que Ruth abaixe a cabeça e entre em lamentações.
A trama se desenvolve e Ruth é apresentada ao caso que poderia mudar toda a sua carreira, e finalmente lhe dar a voz necessária para provocar uma grande mudança social. Tudo graças ao ramo mais chato do direito, cujo o seu marido era um especialista – o direito tributário.
Suprema se destaca por ser um drama de tribunal envolvente, composto por um roteiro enxuto (apesar de previsível), atuações precisas e sem todo o juridiquês insuportável da práxis jurídica. A trilha sonora instrumental do Mychael Danna, juntamente com o figurino e a fotografia, reforçam as características de época que o filme se propõe a apresentar. A adição de Kathy Bates ao elenco, no papel da advogada Dorothy Kenyon, poderia ter sido melhor explorada, e isso acaba pesando negativamente em um dos momentos chave do filme. Contudo, nada que não possa ser ignorado diante do entretenimento proposto.