O que você faria?
por Francisco RussoPaulina é daqueles filmes que, tão logo termina a sessão, você quer discutir com alguém o que acabou de ver. Muito graças aos temas levantados pelo novo trabalho do diretor argentino Santiago Mitre, que cutuca feridas abertas pela sociedade moderna, algumas de forma bastante controversa. A bem da verdade, é difícil aceitar plenamente tudo o que ele apresenta, e esta é a grande beleza do longa-metragem.
A história acompanha a personagem-título, filha de um conceituado juiz que decide abandonar os estudos para se dedicar a um trabalho como professora de política no interior da Argentina. Paulina sabe que isto pode lhe custar alguns anos de carreira, mas o idealismo a move para o projeto. Ela quer trazer cidadania a todos, quer que os jovens desta área rural saibam o que é democracia, ou ao menos que tenham uma breve noção sobre o assunto. Só que, um dia, Paulina é atacada e estuprada. O que poderia ser o ponto final do sonho é apenas o passo seguinte em uma trilha cada vez mais surpreendente e fascinante.
O primeiro ponto polêmico levantado pelo filme tem a ver com o estupro. Velhos argumentos machistas são logo levantados durante a investigação policial, e apontados de forma crua pelo diretor, como o questionamento sobre que roupa Paulina estava vestindo – como se isto de alguma forma “justificasse” o ato. O óbvio pesar em torno do fato ronda a personagem principal, que entra numa espécie de “estado de choque consciente”. Ou seja, por mais que esteja naturalmente abalada com tudo o que aconteceu, ao mesmo tempo mantém uma análise crítica sobre si mesma e tudo o que acontece à sua volta, o que inclui também a desigualdade social e o status quo da realidade em que vive. A frase chave é dita pela própria Paulina: “Quando os envolvidos são pessoas pobres o Judiciário não procura justiça, mas sim culpados.”
É a partir desta constatação que Santiago Mitre trilha caminhos controversos, trazendo ao filme um impacto cada vez maior e mais angustiante. As crenças pessoais do espectador são postas à prova diante dos argumentos apresentados, todos extremamente constestáveis, mas ainda assim válidos devido à lógica existente nos porões da sociedade em que vivemos, que segue regras à luz do dia para que, na sombra, possa agir de forma não tão fiel a elas. É a triste sina de uma sociedade que, na prática, discrimina ricos e pobres justo no item que deveria ser universal e igualitário a todos: a Justiça.
Para compor este mosaico, o diretor apresenta a história de Paulina a partir de vários pontos de vista, que surgem de forma intercalada. A suave trilha sonora aos poucos desaparece, de forma a aumentar ainda mais a tensão existente em torno da personagem principal, defendida com coragem por Dolores Fonzi. Seu semblante sério e decidido é essencial para que a força do roteiro não se perca, especialmente nos momentos em que é confrontada em seus ideais pelo pai. São sequências explosivas em que, por mais que haja muita dor e raiva envolvidos, o que está em jogo na verdade são visões de mundo antagônicas.
Paulina é um filme excelente e bastante difícil, pelas emoções e convicções que remexe. Um longa que faz pensar, não apenas no inevitável debate pós-sessão mas também pelo extremo que assume na defesa de um mundo mais justo. Por mais que conte com uma grande atuação de Dolores Fonzi e uma ótima direção de Santiago Mitre, no sentido de conduzir a narrativa rumo à perplexidade cada vez maior, é no roteiro de Mariano Llinás e do próprio Santiago Mitre que está o grande trunfo deste filme necessário.
Filme visto na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2015.