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    A Livraria
    Críticas AdoroCinema
    2,0
    Fraco
    A Livraria

    A fábula da mulher de bom coração

    por Bruno Carmelo

    Era uma vez uma mulher de bom coração. Ela acreditava que os cidadãos do pequeno vilarejo onde morava precisavam de mais cultura, então decidiu abrir uma livraria. Mas os homens e mulheres mais ricos do lugar ficaram escandalizados com a ousadia daquela viúva. Onde já se viu, um empreendimento deste tipo num imóvel do bairro? Começou assim a batalha para que a mulher desistisse da ideia, e se possível, abandonasse o local para sempre.

    A Livraria tem mais sentido quando lido como fábula. Num contexto realista, as motivações de seus personagens soam no mínimo curiosas. Por que o singelo empreendimento despertaria raiva tão grande em um local defensor do livre comércio? Como a livraria teria sucesso repentino, se os moradores da cidade jamais leem, e de onde viria a queda abrupta de frequentação se a suposta livraria nova, aberta para fazer concorrência, jamais é vista nas imagens? Por que a ideia de uma livraria soa tão absurda para a vilã, que pretendia transformar um lugar num centro de artes? Por que ninguém opta por outro imóvel vazio, com tantos disponíveis pela cidade?

    Talvez estas respostas sejam bem detalhadas no romance homônimo de Penelope Fitzgerald, que deu origem ao filme. Na adaptação de Isabel Coixet, adentramos um terreno simbólico, com direito a uma garotinha de cabelos cacheados saltitando nas ruas, vilões ricos destilando fel em suas mansões e viúvos reclusos alimentando segredos em casas isoladas nas colinas. A diretora aposta em personagens excêntricos como a dona de casa catatônica, o Don Juan efeminado e o banqueiro insensível. Como em Chocolate (2000), a mesquinhez dos cidadãos de uma cidadezinha serve para testar a força de vontade da protagonista feminina – no caso, Florence Green (Emily Mortimer).

    A atriz, conhecida pelas expressões dolorosas e postura corporal retraída, reforça esses traços ao limite do cômico em A Livraria. Esta é uma história de pessoas sensíveis demais, escandalizadas quando a protagonista aceita o convite para tomar chá na casa de um homem idoso ou quando participa de uma festa. Neste vilarejo de casas de bonecas, um sorriso mal colocado infringe as regras, um gesto fora do esperado ofende a moral e os bons costumes. Por isso, Florence sorri pudicamente, agradece a todos, desculpa-se o tempo inteiro e demonstra profunda sensação de desconforto.

    Ao contrário das protagonistas femininas fortes de dramas recentes, esta figura parece deslocada, frágil. Suas armas para lidar com a pressão são apenas a boa vontade e a crença inabalável de que o bem vencerá. Quando é atacada com advogados e pressões financeiras, nem pensa em responder à altura. Florence é uma personagem nobre, culta, e jamais empregaria uma palavra acima do tom esperado. Ela bem que poderia aprender uma coisa ou duas com a prima distante Mildred (Frances McDormand) de Três Anúncios Para um Crime (2017). Ao menos, os diálogos trazem uma bem-vinda dose de ironia, especialmente nas interações com o recluso Sr. Brundich (Bill Nighy).

    Para construir uma fábula tradicional, Isabel Coixet utiliza uma linguagem acadêmica. Toda a narrativa é movida por diálogos, os personagens conversam em plano e contraplano, ou se deslocam pela praia em planos de conjunto. A fotografia contenta-se em iluminar os personagens dentro dos limites da funcionalidade, mesmo que brilhem sob a luz dos refletores na cena da festa. Coixet foca-se em rostos, às vezes desfoca a imagem de uma pilha de livros. Não há metáforas, subentendidos, alegorias imagéticas. A Livraria contenta-se em ilustrar o romance que lhe deu origem, com uma transparência tão singela que poderia ser interpretada como superficialidade ou modéstia, a gosto.

    Atenção: possíveis spoilers a seguir.

    A conclusão deixa um gosto amargo. Descobre-se quem realmente está narrando a história, enquanto a derrota de Florence é percebida como uma vitória moral. Sim, ela foi expulsa, arruinada financeiramente, porém o roteiro interpreta esse ato como fruto da superioridade e “coragem” – repete-se muito esta palavra - da mulher resignada. É nisto que se acredita, realmente? Numa superioridade de valores que acata de modo passivo as injustiças perpetradas pelos homens de poder? É melhor perder, “oferecer a outra face”, do que se envolver numa briga? Talvez Florence deixe uma lição contraprodutiva para a garotinha Christine, filha simbólica que enxerga na dona da livraria um exemplo a seguir.

    Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.

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