Filme pouco conhecido do diretor Martin Scorsese, porém, muito representativo em sua obra cinematográfica, Vivendo no limite (Bringing Out The Dead) ou na tradução livre do original: Ressuscitando os mortos, merece toda atenção para uma análise mais profunda da sociedade contemporânea. O diretor norte americano famoso por vários filmes como Taxi driver (1976), Touro indomável (1980) e o mais recente O lobo de Wall Street (2013), tem em sua extensa obra a situação do homem moderno.
Trata-se de uma abordagem complexa e nada simplista dessa situação que retrata de forma artística as crises e perturbações de uma sociedade que não compreende as suas limitações. De forma geral, podemos dizer que o diretor não levanta questões com abordagens e conclusões fechadas, muito pelo contrário, vai além disso. A riqueza da narrativa permite a análise, que parte de uma situação local, mas que na contemplação ela invade outros lugares do mundo e da vida.
Logo nas cenas iniciais nos deparamos com uma trilha sonora que traduz o espírito do filme, ao som de “T.B. Sheets”, de Van Morrison, música presente em quase toda extensão do filme, reflete de forma genial toda a essência do que vai ser apresentado na tela. Ao mesmo tempo em que a música ecoa nas cenas iniciais, o barulho da sirene de uma ambulância é intercalada com a excelente trilha musical. Nesse mesmo instante a lente da câmera foca os olhos do personagem principal Frank (Nicolas Cage), a mistura de luz e sombra nessa cena demonstra a inquietação e agonia do seu personagem. Frank é um paramédico que trabalha em uma ambulância na noite de Nova York. Estressado com seu trabalho, faz de tudo para ser demitido, pois vive presenciando situações de extrema tensão, tentando salvar vidas de indivíduos que estão à margem da sociedade, como no caso de imigrantes ilegais. A cidade é retratada quase sempre na madrugada, onde prostitutas e religiosos dividem o mesmo espaço, o segundo tentando “salvar” os primeiros.
Nessa dinâmica somos mergulhados no mundo de Frank, toda a descrição acima é extremamente necessário para situar a visão e o lugar que o paramédico ocupa. No primeiro atendimento em um dos dias de trabalho, Frank atende um senhor com parada cardíaca, tentando salvar a vida do seu paciente, propõe à filha do enfermo (Patricia Arquette) que coloque no aparelho de som uma música que ele goste. Assim que uma música do Frank Sinatra é tocada, o paciente é reanimado e levado para o hospital. O interessante nessa cena é a insistência do diretor em privilegiar a música como algo reavivador, parece que a música é o que dá vida aos personagens e ao próprio filme. O espaço geográfico abordado impressiona pela falta de vida, pela escuridão úmida de uma noite fria e caótica. Caos que é representado pelo hospital onde os pacientes são levados, o lugar onde era para ser tranquilo e pacífico, mais parece um hospício ou um campo de concentração nazista. A dor nem sempre é física, mas principalmente psicológica.
No entanto, o paramédico também não está preparado para atender, pois também sofre psicologicamente, permeado de pessoas drogadas e da consciência de que toda a existência parece não fazer mais sentido. O personagem muito se assemelha a uma dinamite pronta para estourar. Mistura-se a tudo isso o sentimento de culpa de Frank, pela frustração de não conseguir salvar a vida de seus pacientes. O diretor aborda o sofrimento do personagem como uma espécie de castigo pelas frustrações de seu cotidiano. Essa situação lembra muito uma descrição feita por Nietzsche no livro Genealogia da moral (1887), onde o autor levanta a questão do sentimento de culpa.
"O castigo teria o valor de despertar no culpado o sentimento da culpa, nele se vê o verdadeiro instrumentum dessa reação psíquica chamada “má consciência”, “remorso” (NIETZSCHE, 2009, p. 64)
O castigo de Frank seria então o martírio pelo qual o personagem passa pelo fato de não conseguir “ressuscitar” os enfermos e doentes de uma civilização decadente. As pessoas representadas na madrugada da cidade, na verdade, não estão vivas, mas mergulhadas no mais profundo abismo da falta de um referencial que norteie e dê sentido para a existência. Frank também faz parte dessa morte em vida, já que nem mesmo as drogas podem salvar a consciência do peso da existência e suas contradições. A sensação que o filme provoca remete sempre ao discurso que a vida humana não tem solução, que toda e qualquer tentativa de controle da natureza está fadado ao fracasso. Mas, voltando para a cena do primeiro atendimento ao senhor com parada cardíaca, quando o paciente é reanimado quando a música do Frank Sinatra é colocada, parece que o diretor propõe uma provável alternativa. A música, enquanto arte, pode ser uma força que media a vida com a existência, ou seja, a morte em vida e a falta de referenciais que impulsione o homem no mundo desolador e caótico, pode estar na arte parte de uma ligação do indivíduo com a realidade. Mesmo assim, o senhor que foi reanimado, na metade do filme morre, pois nem mesmo a arte pode salvar o homem das contradições e da fatalidade que é a vida. Mas pode sim, trazer novas experiências que traduzem em novas formas de se relacionar com o mundo e a realidade que nos é imposta.