Diante da dor dos outros
por Bruno CarmeloEm 2006, um crime abalou a Finlândia. Jukka Lahti, pai de quatro crianças, foi morto a facadas dentro de sua própria casa. A esposa, Anneli Auer, ligou para a polícia para informar sobre a presença de um intruso e pedir socorro, mas foi tarde demais. Durante anos, as investigações prosseguiram, mas ninguém conseguiu encontrar o culpado. A solução da promotoria foi acusar Anneli Auer, e tentar encontrar provas de que a esposa teria forjado a cena do crime.
Esta premissa, por si só, já é bastante interessante. A sequência dos fatos começa a adentrar um terreno surreal, que mais parece o roteiro mal escrito de um filme B. O caso está repleto de negligências dos policiais, má vontade de alguns investigadores, vontade de encontrar um culpado a qualquer preço, insinuações de abuso policial, rituais satânicos, pedofilia, demência, manipulações. O filme empolga pelo absurdo de sua história real, e pelas complexas relações decorrentes do sentimento de injustiça. Uma mãe é realmente capaz de matar o marido, manipular a filha adolescente, abusar sexualmente do filho pequeno? A psicologia humana é um mistério fascinante.
O maior acerto do filme encontra-se no tratamento igualitário às partes envolvidas. O diretor Pekka Lehto recusa-se a tomar partido e ouve tanto a promotoria quanto a defesa, além da ré, de especialistas de todos os tipos e dos filhos do homem assassinado. O material de arquivo é farto, embora disposto de maneira caótica pela montagem. O filme vai e volta no tempo, corta informações e repete algumas cenas. Privilegia-se o ritmo de suspense, a atmosfera sombria, ao invés de uma eventual busca pela verdade.
Talvez esta seja a mais interessante consequência tirada do filme: o discurso sobre a realidade como construção midiática, subjetiva e moldável aos valores morais de cada época. Alguns promotores, cínicos e sinceros, afirmam que pouco importa o que realmente aconteceu naquela casa. O que mais interessa é a versão contada por cada advogado, e sua capacidade de convencer o júri ou não. “Este é um caso de crença”, lembra a promotoria.
Infelizmente Lehta fica tão empolgado com a possibilidade de manipular as sensações do público que transforma Chamada de Emergência em algo próximo do telejornalismo sensacionalista. A patética reconstituição do crime oferece imagens desfocadas, sombras nas paredes e trilha tensa ao piano. Os depoimentos de investigadores em uma garagem vazia beiram o ridículo. Este caso certamente mereceria mais do que clichês em estilo CSI e o fetiche da perversão humana. A questão do ponto de vista é igualmente problemática: como o diretor conseguiu as imagens privilegiadas de dentro da prisão? Até que ponto Anneli Auer executou ações para a câmera, manipulando o próprio cineasta?
É possível imaginar o que grandes documentaristas como Werner Herzog ou Errol Morris seriam capazes de fazer com um material tão denso. Mesmo assim, tanto por seus erros quanto por seus acertos, o irregular Chamada de Emergência consegue mostrar a fascinação exercida nos seres humanos diante da dor dos outros. Na saída da sessão, aliás, os espectadores cercaram o diretor e começaram a enchê-lo de perguntas: “Mas ela é realmente culpada?” “Como termina a história?”. O filme, neste sentido, conquista o seu objetivo, funcionando melhor como ficção (a crônica de um crime possível) do que como registro de uma história real.
Filme visto no 20º festival É Tudo Verdade, em abril de 2015.