Tom Ford dirigiu seu primeiro filme há 7 anos. Sofreu com o preconceito de quem não acreditava na sua capacidade de produzir e dirigir um filme, supondo que se tratava somente de um capricho de um famoso estilista de moda que possuía fama e dinheiro para fazer o que quisesse. Ford surpreendeu a todos com o sensível e eficiente Direito de Amar, que de quebra trazia a melhor interpretação nas telas do ator Colin Firth. Agora, com Animais Noturnos, Tom Ford demonstra que Direito de Amar não foi um “feliz acidente”, e que ele possui, sim, muito talento para o cinema. Só que desta vez, ele está mais ousado, procurando apresentar uma história menos linear.
Os créditos de abertura já demonstram que o diretor quer “causar”, e não está disposto a fazer simplesmente um filme quadradinho e convencional. Estas primeiras imagens, carregadas de poderosa mensagem subliminar remetem mais ao cinema tão personalíssimo de David Lynch. Analisadas superficialmente, as imagens dos créditos de abertura parecem não ter relação alguma com a história do filme, a não ser se constituir numa reprodução com vida das esculturas que Susan, a protagonista, está expondo em sua galeria de arte. Na verdade, este verdadeiro prólogo funciona mais como uma observação sobre a condição da protagonista. As “modelos” da cena não são magras e bonitas como Susan (Amy Adams), mas, ao contrário dela, demonstram estar muito felizes e alegres.
Depois das cenas iniciais, onde somos apresentados a Susan, a história realmente começa, quando ela recebe o manuscrito de um livro escrito pelo ex-marido, Edward. Susan decide ler o manuscrito, e num recurso de metalinguagem, o livro se torna um outro filme dentro do filme. O interessante é que “vemos” o livro através dos olhos e imaginação de Susan, de “sua” leitura do livro. Assim, convencida que o livro – que é dedicado a ela – é uma espécie de vingança de Edward contra ela, Susan vê o protagonista da história, Tony, com a aparência física de seu ex-marido (assim, Jack Gyllenhaal interpreta os 2 papéis), enquanto que a esposa dele tem grande semelhança física com ela (a atriz que interpreta Laura é, de fato, extremamente parecida com Amy Adams). A partir dessa leitura de que o livro tem relação com ela e o ex-marido, Susan passa a relembrar seus momentos com Edward. Assim, o filme começa a transitar por esses 3 tempos narrativos: a vida atual de Susan, sua juventude – quando conheceu, se apaixonou e se casou com Edward – e a história contada pelo livro, o Animais Noturnos do título.
Falando assim, pode parecer que o filme é confuso, mas não é. A grande demonstração de talento de Tom Ford é saber propor essa narrativa em 3 camadas e a maneira virtuosística com que ele as alterna. Não há passagens de forma clichê entre uma e outra, mas o diretor consegue marcar cada uma delas com elementos bem distintivos. A própria fotografia (excelente trabalho de Seamus McGarvey) se encarrega de dar o tom entre o mundo real e o fictício. Quando foca na história do livro, há o predomínio de tons saturados e secos – típicos de deserto onde a história se passa. Quando acompanha Susan, principalmente na época atual, o filme emprega uma luminosidade mais cristalina, e utiliza em cena o predomínio monocromático de cores fortes como o vermelho, o verde, o preto e o branco, que simbolizam o estado de espírito de Susan, que se alterna entre o medo, a culpa, a solidão e a insatisfação, e que se espelham em suas roupas e no ambiente em que ela se encontra. Além disso, como Susan trabalha em uma galeria de arte, Ford aproveitou para usar as obras (expostas na galeria ou na sua casa) como comentários visuais e metafóricos para a narrativa. E, mais uma vez, chamou o compositor Abel Korzeniowski para a trilha sonora. Embora não tenha um tema melódico tão marcante quanto o que havia feito para Direito de Amar, a trilha funciona muito bem para compor o clima do filme.
Além da parte técnica, Tom Ford novamente demonstra grande habilidade na condução dos atores. Amy Adams possui uma interpretação mais introspectiva do que Jack Gyllenhaal, mas ambos entregam performances marcantes. No entanto, quem chama mais atenção são os coadjuvantes Michael Shannon e Aaron Taylor-Johnson (melhor interpretação de sua carreira, sem dúvida) que quase roubam a cena. Aqui é preciso comentar o cuidado de Ford com os detalhes. Não sei se o resultado foi fruto somente de maquiagem ou se houve um toque de efeitos digitais, mas é impressionantemente realista a diferença de aparência entre as 2 idades que Amy Adams e Jack Gyllenhaal interpretam no filme.
Animais Noturnos poderá frustrar muitos espectadores com seu final, mas que, ao que tudo indica, foi fiel ao livro. No entanto, até chegarmos lá, Tom Ford nos carrega por um labirinto de emoções e observações sociais. A qualidade do filme é tão grande, que se ele se resumisse a contar a história do manuscrito já seria por si só excelente. É realmente nesta parte – o “filme” dentro do filme – que Ford demonstra um talento inusitado para uma narrativa carregada de adrenalina, lembrando trabalhos de Sam Peckinpah e os irmãos Coen. Lembrando apenas. Porque a partir deste Animais Noturnos, Tom Ford passa a ter estilo próprio.