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    Clash
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Clash

    O Egito num camburão

    por Bruno Carmelo

    Desde a primeira imagem, a câmera do diretor Mohamed Diab encontra-se dentro de um grande camburão da polícia egípcia. Dois jornalistas são acusados de fazerem parte da Irmandade Muçulmana, grupo que assumiu a presidência até sofrer o golpe dos militares. Enquanto rebatem as acusações, os membros da imprensa são jogados no interior do veículo. Ao longo de um único dia, marcado por protestos nas ruas da cidade, o espaço fechado acolhe as mais diversas pessoas quando os policiais detêm protestantes pró-exército, pró-Irmandade Muçulmana e outros passantes sem posição ideológica definida.

    Clash possui a ambição de representar o tenso ambiente nas ruas do Cairo após a destituição do presidente eleito Mohamed Morsi. Ao invés de ampliar o escopo das imagens para apreender o máximo de temas possível, o cineasta transforma a limitação de espaço e de personagens em motor narrativo. Metonimicamente, Diab representa o país inteiro no cubículo, incluindo homens e mulheres; crianças, adultos e idosos; de diversas classes sociais e pontos de vista políticos. O excelente roteiro dá conta de apresentar a contento uns quinze personagens, fornecendo motivos verossímeis para que eles se encontrem simultaneamente naquele local. Nenhuma figura é incluída apenas pelo imperativo da representatividade: a narrativa torna cada personagem indispensável ao desenrolar da trama.

    O roteiro propõe um debate político repleto de nuances, impedindo que os indiciados sejam reduzidos à caricatura de suas funções. Entre os manifestantes pró-exército, existem pontos de vista distintos, assim como os membros da Irmandade Muçulmana discordam entre si sobre as medidas a tomar naquele momento. O cineasta evita defender um lado específico, enquanto permite a todos expressarem suas opiniões. Ao mesmo tempo, o filme investe numa crônica de absurdos, com direito a uma bem-vinda dose de humor. Dentro do camburão, as pessoas observam as bombas e perguntam: “São os nossos manifestantes? São os deles?”. De longe, no meio do caos, é impossível saber. Vistos pelas janelas quadriculadas, todos os egípcios parecem iguais. Esta seria uma possível leitura do discurso, simbolizada por um jogo de xadrez nas paredes do veículo.

    Em conjunção com o nível excepcional do debate, Diab utiliza recursos estéticos igualmente impressionantes. Mesmo em espaço limitado, com mais de dez pessoas ao redor, o filme extrai um dinamismo exemplar de enquadramentos e montagem. A direção de fotografia magistral de Ahmer Gabr consegue evitar o caos das brigas ao organizar as imagens pela seleção da profundidade de campo: enquanto umas pessoas gritam ao fundo, desfocadas, outra conversa se desenvolve em primeiro plano, em foco. A iluminação possui um refinamento típico das grandes produções, com destaque para as belíssimas cenas noturnas, quando a luz das armas e lanternas entra no veículo e ajuda a delinear os rostos. Mesmo com evidente cuidado estético, o projeto mantém o tom de urgência e a aparência semidocumental.

    Além de todas essas qualidades, Clash consegue superar um dos maiores problemas do huis clos, a narrativa com vários personagens num espaço fechado, juntos o tempo inteiro. Trata-se da questão do “enquanto isso”: é normal que o roteiro e a direção se foquem em pequenos grupos de duas ou três pessoas por vez, mas o que os outros, logo ao lado, estariam fazendo enquanto a ação se concentra nos demais? Filmes como Os Oito Odiados8 Mulheres apresentavam dificuldade nesse quesito, sem conseguir explicar porque a maioria dos personagens ficaria calado e imóvel quando a câmera não se focava neles. Já a ficção egípcia toma cuidado para o espectador saiba o tempo todo o que cada personagem está fazendo e, caso algum grupo esteja silencioso, existe uma razão plausível para isso. A mise en scène é tão precisa em termos de tempo, espaço, luz, direção de atores e representatividade que Clash se torna uma experiência impactante para os sentidos e desafiadora para o intelecto.

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