Uma história de abandono
por Bruno CarmeloO que levaria a pacífica Karine, professora dedicada, vivendo um relacionamento amoroso estável, a ser presa pela polícia? Faces de uma Mulher parte do fim da história, no tempo presente da narrativa, para retornar e compreender as razões do crime cometido pela protagonista. Após o belo, mas tradicional Michael Kohlhaas - Justiça e Honra, o diretor Arnaud des Pallières aposta na investigação psicológica e policial de uma mulher.
Duas escolhas incomuns se encontram neste projeto: primeiro, a decisão de contar uma história de trás para frente, começando na conclusão e terminando no início, e segundo, a escolha de mudar de atriz a cada novo recorte temporal na vida de Karine. Nenhum destes recursos seria indispensável: talvez a história funcionasse em ordem cronológica, enquanto atrizes de idades próximas como Adèle Haenel e Adèle Exarchopoulos poderiam interpretar a personagem em mais de uma fase da vida. No entanto, esta escolha traz uma singularidade interessante ao projeto e acarreta consequências importantes.
O olhar retrospectivo sugere uma leitura determinista de Karine: ela cometeu um crime e manteve relacionamentos abusivos com homens porque era órfã de mãe, recebendo pouco afeto do pai. Ela fugia tantas vezes de casa porque não se sentia querida naquele local, e investia em tantos atos autodestrutivos devido à falta de propósito na vida. O percurso narrativo serve como justificativa para a personagem principal: além de compreendermos o seu ponto de vista por termos uma câmera sempre colada a ela, somos convidados a perdoá-la em virtude do histórico de violência e abandono.
A escolha de várias atrizes pode implicar a ideia de que Karine seria complexa demais para uma única atriz. Assim como Palíndromos ou Não Estou Lá, Faces de uma Mulher investe na representação além do caráter indexical da imagem: a protagonista tem ao mesmo tempo o nariz mais largo e mais fino, ela tem os diálogos brutos de Adèle Haenel e o olhar sedutor de Adèle Exarchopoulos, sem falar no despojamento agressivo de Solène Rigot. Uma pessoa é mais do que a sua imagem, mais do que sua representação, de modo que a essência jamais poderia se limitar a uma forma única. A fragmentação abarca a vontade de incluir o máximo de complexidade e dissonâncias dentro de uma única pessoa.
Escolhas conceituais à parte, o filme soa repetitivo em sua estrutura: temos sucessivos abandonos, fugas, violências sofridas e provocadas, ambiguidades entre ser criança ou ter uma criança. Em tom semidocumental, Pallières multiplica as cenas na cama, repete os instantes de tensão de Karine ao lado de algum homem dentro do carro, investe na sensualidade do corpo feminino, embora não faça o mesmo com o corpo masculino. A atenção quase obsessiva pela personagem poderia ser interpretada como fetichização, algo que pode incomodar parte do público.
A estrutura de causas e consequências cria uma armadilha ao roteiro: caso ofereça um final feliz à heroína, pode ser acusado de ingenuidade, ou de defender a redenção através da dor. Caso opte por um novo círculo de violência, pode sugerir o fetiche da miséria e da martirização. Qualquer justificativa unívoca (“Karine cometeu um crime porque teve uma vida dura”) soa reducionista neste contexto. Faces de uma Mulher termina em uma oposição: por um lado, suas atrizes múltiplas e tempos fluidos tornam a representação multifacetada. Por outro lado, a leitura psicológica catártica e excessivamente corporal aponta para a superficialidade.