O poder contra a justiça
por Bruno CarmeloEm pleno momento político conturbado no Brasil, é particularmente interessante assistir ao telefilme Confirmação, da HBO. A história biográfica se passa nos Estados Unidos, mas dialoga com nossa realidade ao trazer uma batalha legal entre os mais altos nomes do governo. Na ausência de provas dos crimes alegados, o que está em jogo é a capacidade de desacreditar o adversário, usando a mídia para criar um espetáculo e uma cortina de fumaça.
Na trama, o juiz Clarence Thomas (Wendell Pierce) está prestes a integrar a Suprema Corte dos Estados Unidos. Sua indicação é menos fruto de mérito do que uma jogada política: para substituir o único juiz negro do grupo, escolhe-se outro magistrado negro, de histórico bastante conservador e controverso. Antes da confirmação pelos outros juízes, no entanto, a mídia decide conversar com Anita Hill (Kerry Washington), professora de direito, para averiguar o suposto abuso sexual cometido por Clarence no início dos anos 2000. Ela confirma a história e torna pública a acusação de assédio. Mas como comprovar algo que ocorreu há tanto tempo, entre portas fechadas?
Confirmação é uma obra tradicional em seu molde e execução. Seguindo a ordem cronológica dos fatos, o diretor negro Rick Famuyiwa usa planos de conjunto, imagens próximas dos rostos nos momentos importantes, grandes planos da corte nas cenas de tribunal. Nada que fuja da cartilha básica dos telefilmes. O verdadeiro interesse do projeto encontra-se em sua ambição política. O roteiro de Susannah Grant decide não apenas retratar a cronologia dos fatos, mas discutir temas relacionados, como o racismo, o machismo, o abuso de poder e o uso político da mídia.
A situação é muito mais complexa do que se imagina inicialmente. Anitta não é vista como uma vítima frágil - pelo contrário, ela é uma mulher dura, articulada e jamais propensa às lágrimas -; Clarence tampouco aparece como vilão. Nenhum flashback indica o que realmente teria acontecido na época do suposto crime. A dúvida dos juízes e da opinião pública é também aquela do telespectador: O que realmente aconteceu? Na impossibilidade de descobrir, balançamos do lado de cada um, apreciamos a defesa do poderoso Clarence e da desacreditada Anita.
O ponto de vista é empático com Anita, mas permite que a dúvida persista até depois da projeção. Afinal, o que está em jogo é menos a descoberta da verdade do que as maquinações políticas: enquanto os juízes republicanos usam o caso para defender uma pauta conservadora, os democratas aproveitam para mostrar sua postura pró-feminista. O senador Joe Biden, muito bem interpretado por Greg Kinnear, tem uma postura ambígua e controversa de tentar ora abafar o caso, ora resolvê-lo nos bastidores, longe da opinião pública.
Entram em cena acusações de racismo, mesmo os dois lados sendo representados por pessoas negras, e de machismo, quando Anitta é acusada de ser uma mulher ciumenta e descontrolada. O caso revela o pior lado do poder: os abusos para acobertar casos, a manipulação da mídia - com plena conivência da mesma, é claro - e as estratégias de políticos que lucram com as crises. Este complexo cenário é retratado com sobriedade, até frieza, pela direção e pela atuação contida de Kerry Washington no papel principal.
Após uma bela conclusão agridoce, Confirmação abre-se ao estilo documental e permite ao público comparar a Anitta e o Clarence fictícios com os reais, além de revelar o impacto cultural e jornalístico do caso nos Estados Unidos. É uma espécie de desculpa da ficção pela distância com a realidade, mas querendo provar que chegou, de fato, o mais próxima possível do real. Apesar das liberdades e interpretações inevitáveis a partir de fatos, os temas discutidos são de uma riqueza notável.
Filme visto em pré-estreia, a convite da HBO Brasil.