Se Mussum visse Ailton Graça, soltaria o mais sonoro "cacildis"
por Aline PereiraDe onde vem o apelido de Mussum? Este é só um entre tantos (e gigantes) detalhes da história de Antônio Carlos Bernardes Gomes contados em Mussum, o Filmis. O filme estrelado por Ailton Graça estreou no 51º Festival de Gramado com status de fenômeno, e a combinação entre dois dos principais prêmios que recebeu dizem muito sobre a qualidade da obra. Com o troféu de Melhor Filme pelo júri oficial (composto por artistas e profissionais da indústria cinematográfica) e Melhor Filme pelo júri popular em mãos, a produção faz sua maior homenagem ao humorista: habilidade na técnica e coração com o público.
“O Filmis” nos conta a história de Mussum através de 3 fases de sua vida, com elencos distintos: começamos a acompanhar o pequeno Antônio Carlos na infância (Thawan Lucas), a juventude (Yuri Marçal) e, por fim, o sucesso como o comediante que todos conhecemos. Ao se concentrar mais na trajetória emocional do protagonista e nas relações que teve com aqueles que passaram pela sua vida, a jornada comandada pelo diretor Silvio Guindane nos faz descobrir muito de uma pessoa que achávamos que conhecíamos. O saldo é uma sensação de “como eu não sabia disso?” que torna a experiência de assistir satisfatória, divertida e acolhedora.
Basta puxar na memória alguns filmes biográficos que você já assistiu ao longo da vida para encontrar uma característica em comum entre quase todos: o drama. No gênero das cinebiografias, o tom das histórias de artistas fora de suas personas nas telas ou nos palcos é quase sempre trágico e melancólico – uma inspiração, é claro, na realidade, e que o filme de Mussum subverte. O viés de “palhaço triste” é (muito) deixado de lado aqui para interpretar a vida do comediante pela ótica de seu humor perspicaz e de um posicionamento positivo, mesmo quando o drama estava bem ali.
Nesse sentido, chamam atenção as boas inserções cômicas do filme, seja na encenação de alguns quadros (escolhidos a dedo, sem dúvidas) que Mussum fez como comediante, seja nas interações entre os personagens – um mérito conjunto do roteiro, direção e de uma grande escalação de elenco.
Trazer atores diferentes para interpretar um mesmo personagem acrescenta uma nova camada de trabalho à direção. Os talentos individuais não bastam – eles precisam funcionar em conjunto. Um golaço para este aqui: da infância à vida adulta, há uma unidade, em especial, é claro, entre Yuri Marçal e Ailton Graça que equilibram esta continuidade e nos ajudam a criar uma conexão com o protagonista pela compreensão do impacto dos acontecimentos desde a infância.
É difícil também não se impressionar com Cacau Protásio (Vai Que Cola): conhecida pela carreira na comédia, ela protagoniza alguns dos momentos mais tocantes do longa no papel da mãe de Mussum, que divide com Neusa Borges na fase adulta do protagonista. Mãe-solo, Dona Malvina tinha uma relação muito próxima com o filho e o filme deixa claro como a presença dela – mesmo após sua partida – talvez tenha sido o maior pilar na vida do comediante.
A obra conta ainda com a participação de outras figuras que foram importantes na vida de Mussum, tanto na música, quanto no showbiz, de lendas da música, como Elza Soares e Cartola, a lendas da televisão, como Chico Anysio e Grande Otelo – aqui se explica a origem do apelido Mussum, aliás. E é claro que temos também a figura dos Trapalhões, tópico importante nessa história.
O título e o pôster não deixam dúvidas de que este é um filme sobre Mussum, mas, ainda assim, é difícil não criar expectativas sobre a aparição dos Trapalhões – foi o trabalho que o tornou a figura histórica que ele é, afinal de contas. A trupe que o ator formou com Didi, Dedé e Zacarias leva um tempo relativamente longo para dar as caras e os personagens têm um tempo de tela bem delimitado. Em outras palavras: quem espera conhecer ou relembrar mais profundamente a história do grupo não vai encontrar tanto disso por aqui.
É como se o longa contasse com o conhecimento prévio do público sobre os bastidores e a separação conturbada dos humoristas para dar uma passada mais geral nesse capítulo da vida de Mussum. E, se por um lado, fica alguma frustração pela falta dos detalhes, por outro, esse tempo é gasto em outro dilema: a conciliação entre as paixões de Mussum.
Na década de 1960, o artista fundou Os Originais do Samba e foi muito bem-sucedido como músico. O grupo fez turnês internacionais e se tornou um fenômeno na televisão – uma agenda movimentada que começou a colidir com a ascensão dele como humorista. A música fez parte da vida de Mussum desde sempre e a divisão entre os dois “mundos diferente" revelou, no filme, um lado do protagonista, possivelmente, menos conhecido: o que Mussum tinha de cômico e pastelão, Antônio Carlos tinha de pragmático e sério com o trabalho.
Há no “filmis” uma homenagem honesta e carinhosa à memória de Mussum, cujo principal guia talvez seja uma missão de desmistificar algumas das ideias que se têm sobre. “Ah, ‘morreu sem grana’, ‘tinha o alcoolismo’. Nada disso era verdade. Ele sempre foi uma pessoa alegre, que passou por dificuldades, mas soube ultrapassá-las através da alegria. Eu tinha uma preocupação muito grande em mostrar o Antônio Carlos fora desses estereótipos”, diz o diretor Silvio Guindane ao AdoroCinema. Nem sempre acontece, mas, nesse caso, a fala do cineasta se reflete no filme que entregou ao público.
A homenagem também tem seu custo: enquanto cinebiografia propriamente dita, Mussum, o Filmis pode parecer um tanto enviesada demais ao fazer da vida de seu protagonista quase uma fábula, escolhendo deixar de fora alguns pontos baixos. Ainda assim, é difícil categorizar essa escolha como uma falha ou desatenção. Às vezes, algumas histórias de vida parecem maiores do que os indivíduos que a protagonizam, no sentido de serem não apenas um reflexo de seu tempo, mas um norte para aqueles que vieram depois. Mussum, sem dúvidas, é um momento da história que abriu caminho para outros.