Ver é poder
por Bruno CarmeloGina (Blake Lively) se encontra em posição de fragilidade. Cega desde a infância, ela leva uma vida doméstica, dependente do marido James (Jason Clarke). O estranhamento se intensifica quando o casal se muda para a Tailândia, devido a uma promoção de trabalho. De repente, Gina se encontra num país que não pode ver, cercada por pessoas que desconhece, escutando uma língua que não compreende. Sua visão de mundo, por assim dizer, é filtrada pelo marido, num esquema que convém a ambos: ele adora cuidar de sua mulher, ela adora ser cuidada pelo marido.
A rotina é alterada pela chegada de uma nova cirurgia, capaz de restituir a visão em um dos olhos da protagonista. Surpresos, ambos aceitam a proposta – quem não aceitaria? – apenas para descobrir que estavam apaixonados não apenas um pelo outro, mas por esta configuração muito específica de relacionamento. A independência de Gina leva ao desejo de explorar os lugares, as cores, as pessoas. Ela quer sair sozinha, se sentir bonita, desejar outros homens e ser desejada por eles. Pela primeira vez, a jovem mulher busca ter a experiência de controlar o marido e cuidar dele.
Por Trás dos Seus Olhos parte desta premissa para subverter uma série de códigos. O primeiro deles diz respeito à representação da cegueira e da deficiência física: o diretor Marc Forster, que assina o roteiro junto de Sean Conway, oferece um retrato respeitoso e criativo da deficiência visual. Em diversos momentos, o projeto oferece o ponto subjetivo de Gina, permitindo ao espectador enxergar o mundo como ela. Somos confrontados a vultos, sombras, borrões, forçando a nossa percepção de som e a nossa dedução a partir de pequenos indícios. A paisagem sonora é rica e caótica.
Além disso, o isolamento psicológico e geográfico da protagonista é ilustrado por distorções visuais das ruas, pontes e multidões de Bangcoc, criando uma visão próxima do pesadelo. Em termos visuais, o filme oferece imagens muito mais assustadoras que a maioria dos filmes de terror recentes, apenas pela aceleração de carros ou a liquefação da paisagem em forma de mosaicos. O resultado é ainda mais potente por corresponder a um estado psicológico: Forster se dedica a criar imagens para sentimentos que, por definição, não seriam imagéticos.
Outro aspecto de grande interesse é a investigação do desejo através de símbolos. Por Trás dos Seus Olhos representa um cinema adulto no melhor sentido do termo: os criadores acreditam na inteligência dos espectadores, sem precisar explicar através dos diálogos a cegueira da protagonista, as circunstâncias exatas do acidente sofrido na infância, a pulsão sexual da mulher que agora enxerga. Os diálogos são verossímeis, evitando explicações e simplificações. Como os dois personagens estão igualmente confusos, a maior parte dos conflitos se desenvolve num silêncio perturbador.
A trama dedica tempo considerável ao retrato da pulsão escópica, ou seja, o desejo focado no ato de ver e ser visto. O sexo adquire um sentido importante não apenas como estímulo físico, mas como fonte de controle e de manipulação. O ato de ver representa o empoderamento de Gina, uma possibilidade de se posicionar de modo igualitário dentro da vida do casal. O acesso igualitário às imagens interfere no desejo – vide a bela cena em que a esposa tenta vendar o marido durante o sexo, para o desespero deste. O roteiro imagina uma série de situações em que a posição de cada um deles é testada e subvertida.
Após duas engenhosas reviravoltas, a conclusão também se baseia no poder das sugestões. Partindo de um drama, chegamos a um suspense cada vez mais amargo, e ousado por envolver os protagonistas em situações moralmente questionáveis, capazes de testar a identificação com o espectador. Forster oferece uma história amarga, obscura, povoada por pessoas um tanto perversas. Neste sentido, a versão brasileira ganharia em manter o título original, “Eu só vejo você”, já que esta frase possui um sentido importantíssimo no desenlace. A decisão de substituir a frase original por “Por trás dos seus olhos” retira o sentido de uma cena essencial.
Mesmo assim, a escolha não retira os valores de um suspense psicossexual inteligente, sem medo de se exceder às vezes (a figura grotesca do cunhado, o desfecho exagerado envolvendo James), mas crente numa narrativa cujo sentido se compõe apenas pela junção de indícios, de símbolos. Este é um belo quebra-cabeça psicologicamente complexo, como o cinema perdeu o costume de fazer.