Acabei de ver "O Filme da minha vida". Um trocadilho à altura do nome. Se fosse apenas uma obra de arte plástica, como um quadro ou escultura, exclamaria um "Parla!". Mas como é cinema, onde por querer ficamos presos numa sala escura gastando duas horas da nossa vida prestando atenção na vida dos outros... citando a fala de Paco personagem interpretado por Selton Mello, ator e diretor do longa.... acredito que esse seja não só um filme completo, mas uma obra de arte completa. Um Cinema Paradiso de humanidade embebido em prazeres e em perdão.
"O homem sabe que é homem. O porco só é porco." Disse Paco, mas ouso, entre grunhidos humanos, incluir nessa frase mais uma distinção... o porco jamais imaginaria ser homem como o homem imagina ser porco. De fato, é um filme filosófico. Paco era um porco de consciência amplificada, como o camundongo de Dostoiévski em Notas do Subsolo. E talvez o "belo e o sublime" tão buscados na produção cinematográfica sejam utopias da vida real, onde todo inalcançável vira arte. Além disso, inegavelmente o questionamento "sou um homem ou sou um porco?" feito por Paco
constrói uma ponte com o livro A Revolução dos bichos, de George Orwell, que neste ano completa 72 anos da publicação. O que poderiam aqueles porcos mais dizer? É um filme cheio de intertextualidades...
Um quê de crítica à limitação da capacidade de imaginar imposta pelo ensino escolar foi escapada pela personagem interpretada por Bruna Linzmeyer num filme muito ameno, com olhares menos inquisitores que compassivos. Diria até que seja um filme complacente que perdoa a miséria humana. Numa filosofia simples que distingue pouco mas tenazmente o homem do animal. Através de cortantes zonas limítrofes que são a consciência de si e dos outros.
Uma fresta na janela me lembrou Victor Grippo em Inhotim e sua obra "La intimidad de la luz en St Ives, 1997". E um enquadramento tão redondo que faz parecer fluar o protagonista intepretado por Johnny Massaro que alegre se rende ao gozo da sétima arte logo após assistir ao faroeste Rio Vermelho... Vi Tony deslizando enquanto o mundo trotava e essa visão apreciei como algo muito novo e envolvente.
Num outro momento, o olhar do personagem interpretado por Rolando Boldrin compassado com a foto revelada foi de uma sutil perfeição que preenche cirurgicamente a passagem de uma cena a outra. O trem e o maquinista como metáfora e paradoxo de Caronte é de uma candura que injeta esperança de final feliz. Assim como o spoiler do filme pelo filme logo nos primeiros minutos fariam crer.
As cenas deslizam imbricadas. Como na interpretada por Ondina Clais, tendo o êxtase interrompido pela realidade. As mãos de Sofia apenas poderiam tocar o que se tinha, a ordenha de uma vaca e a barra contorcida do seu vestido, e não os pensamentos e sonhos ardentes alimentados pela saudade do marido... Metáforas?
O filme é úmido quase feito "Os dois irmãos" de Milton Hatoum. Mas otimista. E sim! é cheio de metáforas, como a que envolve bicicleta e moto representando etapa em que Tony evolui como agente desencadeador de fatos. O "sou homem" machadiano, de Bentinho, parecia cobrir a cena em que o personagem observava a dança das meninas no pátio da escola.
Senti-me muito envolta da fumaça de cigarros. Mais que a fumaça da locomotiva... A década de 60 teve seus maus hábitos ao extremo... E esse é o cheiro do filme misturado a perfume de pomar, vinho, queijo e salame.
Por vezes, fui transportada à França romântica, dona das luzes. Na cadência da língua na lição ensinada, na poesia declamada e nas melodias que invadiam feito o sol invade as noites. Do DNA de Vicent Cassel o filme alcançou uma mistura muito rica e real.
O longa foi um encontro agradável com a conterrânea Vania Catani... Delicadíssima e marcante produção. Tal como o vinho que perfuma narinas da alma, abre papilas do ser como se fossem cortinas e janelas, enchendo de gozo sem pressa o corpo, "O filme da minha vida" merece ser tomado. Deu vontade de aplaudir depois da tatuagem que Selton Mello cravou na tela "aos meus pais".
Bom, escreveria um livro, mas não posso dar mais spoiler do que já dei. Mais pessoas devem senti-lo. Vê-lo é sentar-se à mesa do cinema gourmet numa concepção sinestésica.
Se Chico Buarque fez " Tua Cantiga" sem ver esse filme, imagina o que pode vir por ai... Não quero privar gênios dessa experiência rica logo no início, a invadir o meio e a transcender no fim!...
#ofilmedaminhavida