Biografia sonhada
por Bruno CarmeloAos 87 anos de idade, o diretor chileno Alejandro Jodorowsky decidiu contar no cinema a história da sua juventude. Nos anos 1940 e 1950, enfrentou a pressão do pai conservador e da família hipócrita para se tornar poeta e viver entre círculos de artistas, desenvolvendo o seu estilo e aprimorando uma visão de mundo baseada na existência presente e na recusa às regras do sistema. Contrariando o preconceito segundo o qual todo jovem libertário se torna um adulto burguês, o cineasta confirma que a formação marginal ainda determina seu modo de vida.
A trama é transformada numa epopeia de produção gigantesca, com muitos cenários, centenas de figurantes, dezenas de acessórios e adereços. Todas as artes estão misturadas na trama: a literatura, a dança, a música, as artes plásticas, a escultura, a arquitetura... A precariedade financeira é retratada com as cores e a opulência de um circo. O cineasta faz deste filme-testamento uma biografia afetiva, contente em deturpar e extrapolar fatos que lhe pareçam mais interessantes. Trata-se de uma biografia imaginária, uma espécie de biografia dos sonhos.
Apesar de tamanho lirismo, Jodorowsky faz questão de manter elementos verossímeis em sua trama. O primeiro deles está na escolha dos atores: enquanto Adan Jodorowsky interpreta o pai na fase adulta, o irmão Brontis Jodorowsky interpreta o avô, Jaime. O próprio Alejandro aparece em cena para falar de si mesmo, dirigir os atores diante das câmeras, e mandar mensagens fantasmáticas ao seu passado. Como uma voz da experiência, o autor-diretor tenta acalmar sua versão jovem e sanguínea, garantindo que as apostas foram certas, que tudo ficará bem. O cineasta olha com carinho para sua própria trajetória de excessos.
Outro elemento de destaque é a transformação do protagonista em Édipo, obrigado literalmente a matar o pai e dormir com a mãe (a namorada e a mãe do personagem são interpretadas pela mesma atriz) para se tornar um adulto autônomo. Pamela Flores, aliás, está excelente tanto no papel da matriarca sofredora, que se comunica apenas em canto lírico, quanto na personagem da musa rebelde de cabelos vermelhos. O filme busca o equilíbrio no elenco: enquanto os coadjuvantes são surreais, Alejandro se parece com uma pessoa comum, tímida, tentando absorver as estranhezas do mundo ao redor.
Poesia Sem Fim mantém um ritmo ao mesmo tempo barroco e cômico, que levou o público às gargalhadas em vários momentos. Na história, existe espaço para torta na cara e crítica ao nazismo, para sexo casual e para amores profundos – vide a belíssima cena da despedida encenada por fantoches. Este é um mundo de ilusões e de faz de conta, algo um tanto inesperado dentro do gênero biográfico. Esta fricção garante a singularidade e ousadia do projeto.
Filme visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2016.