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    A Mulher dos Cachorros
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    A Mulher dos Cachorros

    Resiliência

    por João Vítor Figueira

    Em A Mulher dos Cachorros, esconder é mais importante do que explicitar. Contemplar é mais relevante do que entender. Sentir é mais urgente do que saber. O drama argentino dirigido por Verónica LlinásLaura Citarella acompanha uma protagonista sem nome, em uma história sem clímax envernizada por um drama virtualmente sem diálogos. A fábula sobrevivencialista opta por ser vaga em alguns aspectos para potencializar seu caráter metafórico e permitir que diferentes lentes sejam usadas na interpretação desta obra.

    Llinás acumula a função de cineasta e roteirista com o trabalho de atuação interpretando a tenaz protagonista, uma figura solitária e resiliente que vive em uma área rural da parte pobre de Buenos Aires. Situada na periferia da periferia, isolada e sozinha no meio da mata, ela mostra habilidades de sobrevivência que fazem par com os talentos do personagem de Viggo Mortensen em Capitão Fantástico. O mais próximo de família que a mujer de los perros tem são os dez ou mais cachorros que a acompanham por todos os cantos, dividem a cama com ela, mas não são exatamente tratados por ela com a ternura de uma mãe. A ligação da mulher com sua matilha está mais próxima da irmandade.

    De início, a câmera quase documental de Citarella e Llinás oferece uma lenta crônica dos hábitos desta mulher sobre quem pouco se sabe. A vemos reconstruir seu barraco a cada nova estação, caçar para comer, garimpar lixeiras em busca de algo que a sirva, fazer suas necessidades fisiológicas ao ar livre, caminhar longas distâncias em busca de água potável e suprimentos, defender seu território com uma postura altiva diante de quem ela sente que pode ser uma ameaça. O filme parece querer discutir a natureza da humanidade através de paralelos entre o homo sapiens e outras espécies, questão abordada pela filosofia desde Platão, mas chega a ser um pouco redundante em seus postulados quando se envereda por este caminho.

    As gigantescas elipses sobre a identidade da mulher são o que a trama traz de mais instigante ao mesmo tempo em que não teria feito mal se o roteiro revelasse, mesmo que de maneira subjetiva ou esfíngica, mais sobre ela. Seria a mulher uma eremita que quer fugir do materialismo da sociedade de consumo como o Christopher McCandless de Na Natureza Selvagem ou apenas mais uma pessoa pobre da América Latina que sobrevive à duras penas? Seu asilo longe de sua comunidade foi autoimposto ou forçado? Esta Eva sem Adão e sem Deus em seu Éden no terceiro mundo ganha vida na contundente performance de Llinás, que imprime em sua personagem até mesmo uma certa elegância inesperada, fugindo da armadilha de uma atuação melancólica óbvia ou de uma ênfase em trejeitos animalescos que seria totalmente caricatural e dispensável. Com uma bela entrega às exigências do papel e as ótimas interações com a matilha, a atriz faz parecer fácil atuar em circunstâncias tão rigorosas.

    Em termos estéticos, as cineastas alternam composições quase documentais com planos mais contemplativos, trançando uma identidade visual ambivalente para A Mulher dos Cachorros. A proposta de acompanhar a protagonista ao longo das quatro estações do ano também é uma oportunidade muito bem explorada pela fotografia de Soledad Rodríguez que assume uma nova atmosfera a cada segmento. A intercalação de close ups e planos abertos contextualiza a força desta quase-heroína em sua interação com o ambiente e a maneira como seu corpo se impõe como uma fortaleza em determinadas circunstâncias. Há problemas, porém, no ritmo proposto por esta narrativa, que parece andar em círculos e se arrastar quando mostra a mulher repetindo situações de sua rotina (sendo que o filme não é dos mais longos com 95 minutos de duração). Neste sentido, o carimbo de “filme de arte” pode ser muito sentido, para o mal e para o bem.

    A Mulher dos Cachorros pode ser encarado como um libelo sobre a autossuficiência feminina, como uma obra sobre ser leal a si mesmo, como um tratado da força das pessoas que vivem com muito pouco. Um bom filme que sofre e se beneficia das escolhas radicais de suas autoras.

    Filme visto na 12ª CineBH - Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, em agosto de 2018.

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