Família e filme em desequilíbrio
por Rodrigo TorresFilmes de estreia têm suas peculiaridades. Anos de cinefilia, estudo, ideias, curtas etc separam o cineasta em potencial de seu primeiro longa-metragem. Assim, é comum, especialmente no Brasil, que esse caldeirão de influências se reúnam de modo confuso e resulte num debute inseguro. Há também os longas realizados após o devido tempo de maturação. Travessia é um filme irregular, que fica no meio termo entre um caso e outro.
João Gabriel aborda um tema bem próximo de todos os públicos: família. Na verdade, um conflito familiar. Quando a matriarca morre, resta a relação conturbada entre Roberto (Chico Diaz) e Júlio (Caio Castro), pai e filho. Como retrato dessa ruptura, os personagens nunca dividem o quadro, nem o mesmo espaço em cena. Apesar de distantes, a fuga da realidade é consonante entre eles, marcada pelo consumo excessivo de álcool pelo pai, de drogas sintéticas pelo filho. As consequências destrutivas da perda traumática são um ponto de confluência nas tramas paralelas; porém, retratadas cada uma ao seu modo e como largada para diferentes recomeços. Nesse aspecto o diretor e roteirista é bem-sucedido.
A condução da narrativa, no entanto, carece de segurança. João Gabriel investe numa trilha sonora repetitiva para manter o ritmo do filme em seus longos silêncios. A trama anseia naturalismo, os diálogos soam mecanizados. A sequência mais intrincada de Travessia propõe uma rima interessante entre a batida da música eletrônica na boate em que Júlio dança sob o efeito da bala e a batida de carro do embriagado Roberto, mas se atrapalha na montagem excessivamente picotada. A proposta é bacana, apresentar as duas faces de um mesmo drama familiar, porém esvazia o peso da tragédia de fato, vivenciada por Roberto.
Travessia resulta, assim, num trabalho desequilibrado. Por dois aspectos principais em comparação com a grande atuação de Chico Diaz. Primeiramente, pelo roteiro, que desrespeita a construção sutil da angústia de Roberto com cenas expositivas gratuitas, como o momento em que ele desenha a imagem de um menino atropelado. O outro é a limitação de Caio Castro, incapaz de erguer uma trama — apesar de se encaixar perfeitamente ao perfil do ator — também inferior. Na história de Júlio, o principal destaque é a fotografia, bem evocativa sobre o seu estado de espírito em momentos variados, seja no uso de drogas alucinógenas, seja, nas cenas à praia, por seu desejo de deixar o país e as más lembranças pra trás.
Por fim, vale ressaltar a maior qualidade de Travessia: a maneira com que Salvador é retratada. João Gabriel foge do estereótipo de uma cidade e um povo festivos e compõe a capital baiana de modo sombrio, em sintonia com o ânimo de Roberto e Júlio, com o clima que permeia toda a trama. Sua paisagem urbana é majoritariamente fotografada em suas vias (ruas, túneis, avenidas, estradas), numa sofisticada concordância com o título e os principais conflitos do filme: um atropelamento, no âmbito espacial, literal; e, no âmbito espiritual, a morte. Eis o aspecto em que o cineasta articula uma ideia com maior habilidade e demonstra o seu talento.