“Homem-Aranha no Aranhaverso”, de 2016, é apontado como uma das melhores adaptações do cabeça de teia para as telonas, mesmo se tratando de um filme animado lançado em plena época onde as adaptações para live-actions dos super-heróis de quadrinhos está se tornando cada ano mais popular. O maior mérito do filme não é ter sido uma excelente adaptação do Homem-Aranha para as telonas, mas justamente ter sido algo muito maior do que isso: “Homem-Aranha no Aranhaverso” é uma homenagem ao legado e a história do personagem, fazendo constantemente referência ao passado do cabeça de teia não apenas nos quadrinhos, mas em todos os lugares onde o personagem esteve presente (desenhos animados, musicais e até o sorvete temático). Tanto é que a primeira cena do longa é o Peter Parker do universo de Miles Morales contando com poucos detalhes sua trajetória como Homem-Aranha, deduzindo que o público já conhece sua história.
A homenagem ao Homem-Aranha como ícone cultural é construída através do modo como a animação 3D brinca com o formato das histórias em quadrinhos (cujas são a origem do personagem), presente no traçado nas cenas de luta que traz ideia de ação e movimentação e nos balões de pensamento nos momentos de ansiedade de Miles, e a consciência da parte criativa do filme sobre a relevância dos quadrinhos para o desenvolvimento do personagem é um dos principais pontos que explicam o porquê da escolha de realizar uma animação, e não um filme com atores reais. A premissa das adaptações atuais de live-action dos super-heróis da Marvel e DC é mais trazer os personagens dos quadrinhos para um público de cinema que teve pouco ou nenhum contato com o produto original e menos fazer esse mesmo público lembrar que aquela história das telonas veio de uma mídia anterior, não sendo estranho o fato de muitos filmes serem produzidos como roteiros originais. Mas Homem-Aranha no Aranhaverso é diferente: seu objetivo é justamente fazer o público lembrar o legado do cabeça de teia nos quadrinhos e sua importância para a cultura pop norte-americana, e o formato de animação é muito mais eficiente do que uma adaptação de live-action para fazer tal homenagem às HQs.
A principal característica sobre o Homem-Aranha que o Aranhaverso usa para reforçar o legado do personagem e embasar uma referência sólida ao Miles Morales é o fato de que, como nenhum outro personagem dos quadrinhos e da cultura pop norte-americana, o cabeça de teia trabalha o papel da identidade no indivíduo como agente ativo no mundo, o indivíduo como agente propício a afetar e ser afetado pela condição de seu meio social. A criação do personagem por Stan Lee e Steve Ditke na década de 60 foi um ato extremamente revolucionário por quebrar os padrões e estereótipos que existiam até então nos super-heróis de quadrinhos. Até esse período, a principal inspiração para a criação de heróis era a exaltação de algum ideal utópico, algo que representasse um estado existencial que superasse a condição humana, seja o Super-Homem e o Batman representando ideias de perfeição, super força, invencibilidade e resistência corporal, seja o Capitão América e a Capitã Marvel representando ideais de nacionalismo e patriotismo nos períodos históricos entre a segunda guerra mundial e a guerra fria, onde a principal arma dos Estados Unidos e do ocidental era a propaganda ideológica. O Homem-Aranha/Peter Parker, pelo contrário, é um super-herói humanizado, um personagem que não está representando um ideal utópico ou alguma simbologia externa à sua condição de indivíduo; o Homem-Aranha não carrega o peso de representar o desejo humano pela perfeição nem a força do nacionalismo norte-americano, ele (o seu verdadeiro eu, no caso, o Peter Parker), é um adolescente com uma história repleta de perdas e sofrimentos e com problemas como dificuldades financeiras, desilusões amorosas e a conciliação entre as várias personas dentro de si (Peter Parker como super-herói, como estudante, como fotógrafo, como sobrinho, como namorado, etc), problemas que qualquer pessoa na vida real poderia ter. É exatamente por isso que o fato de agora termos um Homem-Aranha que é um jovem negro de descendência latina do Brookyn, outro que é um detetive noir, uma colegial de anime ou personagem do Looney Tunes não descaracteriza o personagem, pois o que caracteriza o cabeça de teia não é o fato de ser o Peter Parker que veste a máscara do aracnídeo, mas em ser esse personagem humanizado que carrega seus traumas e dores por atrás da máscara, e é exatamente isso que ocorre em todas as suas versões do multiverso mostradas no filme. Por causa da abrangência da discussão sobre o identitarismo do personagem, afirmar que o fato de agora termos um Homem-Aranha negro e latino ocorre por causa da representatividade negra ou, em uma análise ainda mais enviesada, de que isso é “influência da eleição de Barack Obama para presidência dos Estados Unidos em 2008” (já que Miles Morales apareceu pela primeira vez nos quadrinhos nesse período), é uma crítica totalmente superficial, já que a trajetória de Miles Morales é muito mais sobre transmitir o legado de Peter Parker em representar a juventude e seus dramas e menos fazer jus a uma representatividade da população negra (um papel que o Pantera Negra se encaixa mais adequadamente). O peso simbólico que o personagem carrega não mudaria se ele fosse um jovem sino-americano ou árabe, por exemplo.
De todos os super-heróis que foram adaptados para o cinema na última década, o Homem-Aranha foi o que mais se adaptou a abordagem do multiverso como forma de contar histórias, e isso aconteceu pois, mais do que qualquer outro personagem, o cabeça de teia é menos um “personagem de ideais” e mais um “personagem de possibilidades”, já que o jovem e o adolescente também têm múltiplas possibilidades de escolhas. O mesmo conceito do “multiverso” trabalhado com outros heróis renomados como Super-Homem, Batman e Capitão América não teria o mesmo impacto que tem com o Homem-Aranha exatamente pelo fato desses personagens, como dito anteriormente, representarem ideias utópicos que não precisam de versões paralelos, afinal, esses já representam ideias de perfeição e patriotismo completas por si próprio e que não precisam de versões alternativas. O Homem-Aranha contem suas variantes porque o ser humano também as contem. O que Peter Parker entrega nas mãos de Miles Morales, sendo o jovem do Brooklyn mais uma dessas variantes, não é um objeto físico e concreto como o manto do Homem-Aranha ou qualquer outra coisa que remeta a seu mestre (como o Midoriya recebendo o fio de cabelo do All Might em Boku no Hero Academia), mas o seu legado simbólico como forte ícone cultural, afinal, até o uniforme e os superpoderes de Miles são completamente diferentes do Peter Parker, pois, mesmo existindo a admiração por aqueles que vieram antes, é preciso sempre buscar o próprio caminho e a própria identidade.