Após a Marvel solidificar seu universo cinematográfico ao apresentar, por décadas, seus heróis mais famosos dos quadrinhos, chegamos um novo momento: o de renovação. Há alguns anos, a chance de apresentar um Homem-Aranha que não fosse Peter Parker parecia mais do que impossível. Surreal, para falar com mais exatidão. Contudo, com os acontecimentos traçados em Vingadores: Guerra Infinita vimos que até nossos heróis podem sangrar e, surpreendemente, morrer. Aproveitando a deixa inserida por Thanos, a Sony coloca um novo Homem-Aranha nos holofotes: o jovem Miles Morales.
As diversas realidades trabalhadas nos quadrinhos (que podem confundir aqueles que não leem avidamente cada edição) são postas com naturalidade em Homem-Aranha no Aranhaverso. Na animação dirigida por Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman, a magia dos encadernados se une à uma realidade um tanto quanto bruta, visto as escolhas criativas feitas pelo roteirista Phil Lord (Anjos da Lei). A conexão do espectador com Morales é feita basicamente de imediato pois existe uma aproximação sincera desde a primeira cena – seja com a relação que tem com os pais ou com a admiração que tem pelo misterioso tio –, e impulsiona o filme a ganhar uma aura séria, pouco importando se foi feito 100% por computador.
O jovem vive em uma Nova York em que Peter Parker é o Homem-Aranha há anos e segue combatendo o crime. Miles é ingênuo, sonhador e admirador de Parker, mas nunca se imaginou em seu lugar. Tudo muda quando, ao ser picado por uma aranha radioativa e ver seu ídolo sendo morto pelo Rei do Crime (um dos vilões mais conhecidos dos quadrinhos), ele acaba mergulhando neste universo aracnídeo de um jeito ou de outro. As diferenças de idade, bairro e experiência não formam uma barreira: Miles vai aprendendo aos poucos a encontrar este lado heróico escondido dentro de si.
O drama contido na morte de Peter Parker neste plano de realidade é "escondido" devido à inserção de outras dimensões que incluem uma linha do tempo em que Parker está vivo e anos mais velho; uma em que Gwen Stacy se torna a Mulher-Aranha; e outras em que vemos o Homem-Aranha Noir, o Porco-Aranha e Peni Parker, uma menina de 9 anos que também possui os poderes aracnídeos. Compartilhando as mesmas perdas, os mesmos poderes e os mesmos desafios, os heróis se unem para conter os planos que o Rei do Crime e seus comparsas (como a Doutora Ocktopus) pretendem executar com um tom de aventura os acompanhando – mas ao mesmo tempo sem deixar de fora a dose de dramaticidade que sempre faz lembrar que, na linha do tempo de Miles, Peter Parker se foi para sempre.
A animação não só surpreende pelas suas inovações no roteiro como também nas que compõem seu visual. Como se estivéssemos lendo um quadrinho, há o avanço de páginas, os balões que representam pensamentos de Miles e as cores apaixonantes que compõem uma explosão de vivacidade. Os traços de Homem-Aranha no Aranhaverso são diferenciados e fazem com que cada quadro seja digno de fazer os olhos brilharem. Para completar tamanho cuidado técnico, a dublagem original é um show à parte: Jake Johnson como Peter Parker, Mahershala Ali como tio Aaron, Hailee Steinfeld como Gwen e, claro, Nicolas Cage como Homem-Aranha Noir entregam sinceridade em cada fala e funcionam organicamente.
Por fazer parte do universo Marvel, a animação não perde a chance de dar a Stan Lee uma breve participação. A boa notícia é que, apesar de seu recente falecimento, o co-criador de Homem-Aranha ganhou um papel que vai muito além de sua presença, já icônica e esperada por todos. Como um vendedor de fantasias do teioso, Lee dá conselhos valiosos a Miles Morales e seu gesto para com o protagonista pode ser considerado poético. Sem dúvidas, uma das participações mais marcantes do artista no cinema.
Homem-Aranha no Aranhaverso representa um amadurecimento do universo Marvel nas telonas que é muito bem-vindo tendo em vista o atual e crescente momento de discussões sobre inclusão e representatividade. Um protagonista negro vestindo a roupa de um dos heróis mais conhecidos (e queridos) da cultura pop não deve ser encarado como uma surpresa, mas sim como um passo importante que certamente manterá seu curso daqui para frente. Ser herói não tem gênero, idade ou cor. Se o herói é algo universal, qualquer um pode vestir a máscara.