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    Nova Dubai
    Críticas AdoroCinema
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    Regular
    Nova Dubai

    O narcisismo é um humanismo?

    por Bruno Carmelo

    Nos últimos anos, os festivais de cinema e o circuito de arte brasileiros têm atribuído grande valor às intersecções entre ficção e documentário, incluindo todos os tipos de ficcionalização de histórias reais, filmagens realistas de tramas fictícias, reinvenções, releituras e incursões no realismo poético ou fantástico. Diversos diretores jovens têm investido numa forma particularmente barata e direta de cinema: a exposição de si próprios, ou seja, o cinema como autorretrato ou instrumento artístico-terapêutico.

    Os Dias Com Ele, Construção, Elena, Mataram Meu Irmão, Francisco Brennand, Sobral – O Homem que Não Tinha Preço, Ela Volta na Quinta, e curtas-metragens como Cenário, Miragem, Choclo, Feio, Velho e Ruim, Quarto VazioVirgindade ecolocam os diretores ou seus familiares como centro da trama. Os cineastas expõem as suas histórias pessoais sem pudor, revelando momentos de fraqueza e atitudes questionáveis que rompem com a autoidealização.

    A estratégia de se enfeiar, ou se humilhar, tem rendido seus frutos em premiações do cinema comercial (vide a predileção do Oscar por atores que engordam para o papel ou se “desglamourizaram”), e também se reflete, guardadas as proporções, neste pequeno cinema artesanal e familiar. Busca-se um realismo cruel, sádico, mas virtuoso de acordo com o mecanismo simbólico do martírio – afinal, estes artistas oferecem seus corpos e sua reputação à arte. A humildade – criativa, no caso – é percebida como virtude, tanto do autor quanto da obra.

    Isso se encaixa perfeitamente na lógica do pensamento romântico e autoral, segundo o qual é preciso eliminar as barreiras entre o autor e a obra, fazendo com que a obra seja um reflexo direto do talento de seu criador. Seguindo este raciocínio, quanto maior a presença do diretor na obra, melhor, quanto mais traços de sua personalidade forem perceptíveis, melhor. Os filmes mais criticados, hoje em dia, não são justamente aqueles que os críticos acusam de “não terem personalidade”, de poderem ter sido “feitos por qualquer um”? Estamos em plena era do culto à personalidade.

    O cinema documental narcísico brasileiro deu um passo além, as duas esferas: o criador torna-se criatura. O artista é a própria arte. Neste leque de produções, nenhuma fornece um exemplo mais claro e mais radical de narcisismo do que Nova Dubai, de Gustavo Vinagre. O média-metragem de 50 minutos apresenta o diretor e seus amigos, discutindo sobre assuntos banais em casa, e depois fazendo sexo em lugares públicos. Às vezes ele faz sexo de modo descompromissado com um amigo, às vezes com o pai deste mesmo colega, ou ainda com um agente imobiliário (interpretado pelo cineasta Caetano Gotardo) durante a visita de um apartamento.

    As cenas de sexo são cruas, rápidas, desprovidas de contexto narrativo. Transa-se como para driblar o tédio, para preencher o vazio, para passar o tempo. Não existem amarras narrativas ou morais: os personagens não trabalham, não estudam, não estão apaixonados, não demonstram ligações a qualquer forma de religião, de código familiar, de partido político. O sexo é desprovido de afeto, como os personagens são desprovidos de rumo: as atividades sexuais, assim, constituem formas de se manter em movimento. Enquanto o Cinema Novo e Marginal atribuía a deambulação aos pobres e marginais, o novo cinema retrata a deambulação da classe média, rica e aborrecida.

    É importante sublinhar que os atos sexuais são explícitos, com Gustavo Vinagre presente em todas as cenas, como protagonista de cada ato. Quando penetra ou é penetrado, quando pratica ou recebe sexo oral, é nele que a câmera se concentra, é em seu pênis (sempre em ereção) que a câmera busca alguma forma de significado – ou de representação da falta de significado. Nova Dubai busca o ultrarrealismo, a exposição extrema, fazendo do sexo o tabu máximo a superar.

    Aqui, somem as questões sobre a autenticidade dos corpos e dos membros, como houve, por exemplo, nas produções Brown Bunny e Irreversível (seriam mesmo os pênis dos atores em cena, ou haveria uso de dublês?). Os enquadramentos fazem questão de mostrar que são os próprios atores praticando sexo diante dos nossos olhos. Os planos próximos comprovam que a penetração não é simulada, a felação não é sugerida. Temos “a realidade” – fetiche máximo do cinema, este trauma platônico de querer superar o decalque entre o real e a sua representação. Apesar da presença de personagens fictícios em situações fictícias, o sexo tenta liberar-se da aparência de simulação inerente a toda apreensão artística do mundo.

    Uma vez que a questão do sexo fica devidamente escancarada, o discurso fílmico mostra-se confortável para explorar outros temas fetichistas e incômodos, como a morte, o estupro, o incesto, a pedofilia. O protagonista afirma, olhando para a câmera, ter tido desejos sexuais pela própria avó, enquanto um adulto compartilha os abusos sexuais que sofreu na infância. Um colega lista, com evidente prazer, suas cenas preferidas de filmes de terror, enquanto outro narra a sua tentativa frustrada de suicídio. Esta é uma obra destrutiva, uma espécie de rolo compressor pelos temas controversos da moral contemporânea. O olhar poderia ser anarquista, politizado, mas ao invés do furor militante, encontra-se a ternura dos discursos autoindulgentes e melancólicos. Com tanto carinho por seus personagens, o filme é incapaz de tomar o distanciamento necessário e eventualmente criticá-los por sua inércia.

    Seria exagero falar em uma obra reflexiva sobre a apropriação dos espaços públicos ou a especulação imobiliária (pela presença de prédios vazios, da individualização do consumo). As questões políticas ficam em segundo plano, pouco articuladas com o sexo e a morte. O maior valor de Nova Dubai é como filme-sintoma, como retrato do máximo de individualismo e de exposição de que é capaz o cinema. Afinal, o que seria possível propor após este filme? Como ir além? O que resta a escancarar, a destruir, a decompor? Nova Dubai carrega a tristeza de um final, de um esgotamento, como se tivesse aberto um abismo diante de si. Após esta experiência radical, o cinema narcisista da jovem geração brasileira deveria fortemente refletir sobre como se reinventar.

    Filme visto no Rio Festival Gay de Cinema, em julho de 2015.

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