Épico dilacerante
por Kalel AdolfoAos 83 anos de idade, Ridley Scott ainda é capaz de provocar sensações intensas em sua filmografia. Com O Último Duelo — drama ambientado no século XIV — o cineasta cria um conto épico que retrata os horrores físicos e psicológicos impostos sobre as mulheres desde aquela época. Quem ajuda a potencializar todo o efeito da obra é Jodie Comer (Killing Eve), que entrega uma das performances mais marcantes de sua carreira em constante ascensão.
Mas antes de entrarmos em detalhes, é necessário entender a proposta do filme: neste épico baseado em fatos reais, acompanhamos o relacionamento inicialmente amistoso entre o cavaleiro Jean de Carrouges (Matt Damon) e Jacques Le Gris (Adam Driver). Digo inicialmente, porque em pouco tempo de história, percebemos que a ganância de Le Gris o fará trair até mesmo os seus mais antigos aliados.
E é em meio a tamanhos desafetos e crueldades que Le Gris estupra a esposa de Carrouges — a encantável Marguerite de Carrouges (Jodie Comer). Dispostos a punir o inimigo, Marguerite e Jacques iniciam um processo na corte real, mas acabam se deparando com uma forma de resolução perturbadora e arcaica.
*Atenção, o texto a seguir contém spoilers de O Último Duelo!
Violência sexual, fanatismo religioso e machismo são abordados de forma devastadora
Temas como machismo, violência sexual e fanatismo religioso não são novidades na sétima arte. Mas aqui, tais discussões são propostas de maneira crua e extremamente devastadora. E esse é um dos primeiros grandes acertos de Ridley Scott, já que o diretor não tenta mimetizar o lugar de fala das mulheres. Ao invés disso, ele segue um caminho mais rudimentar, focando em transmitir a raiva, tristeza, vergonha e impotência sentidas pela sexo feminino, que historicamente, é punido por uma sociedade patriarcal.
Em O Último Duelo, Marguerite sofre um estupro, mas não possui a oportunidade de processar os sentimentos destruidores que procedem tamanha violência. Ao contrário, ela precisa provar a todos — incluindo seu marido, família e amigos — que não possui culpa diante de tamanha atrocidade. Frequentemente, o destino da esposa de Carrouges é decidido e discutido por homens boçais.
Apesar de retratar o estado social e cultural de uma época distante, a obra conversa — infelizmente — de maneira assustadora e melancólica com os tempos atuais.
Jodie Comer é a alma e coração de O Último Duelo
Indiscutivelmente, a maior força da produção é o seu brilhante elenco. Matt Damon traz inúmeras nuances à Jean de Carrouges, que possui uma personalidade árdua e impulsiva. Entretanto, ainda que tenha tantos defeitos, é quase impossível não sentir empatia pelo personagem nos momentos em que ele luta contra a influência crescente e negativa de Le Gris nos primeiros capítulos.
Adam Driver dispõe de uma habilidade natural para encarnar antagonistas. Mesmo que não tenhamos um grande acesso ao seu passado durante o filme, conseguimos compreender a natureza de seu caráter e ações.
Porém, mesmo diante de performances tão grandiosas, Jodie Comer é quem consegue potencializar a energia brutal e tensa da produção. Ela é o coração e alma da trama. Quando é apresentada no filme, sua persona é serena, reservada e timidamente autoconfiante. Todavia, Marguerite ganha um arco progressivo, que é concluído com a revelação de uma mulher fascinante e destemida em níveis absurdos.
Comer entrega cada fala, olhar e gestos com tamanha precisão e genuinidade, que é dilacerante observar os horrores impostos sob sua personagem. Quando está em tela, a linha entre ficção e realidade é praticamente extinta. E essa é a magia que poucos atores são capazes de proporcionar às audiências. Não há sombra de dúvidas: a estrela ganhará grande destaque na próxima temporada de premiações.
Direção visceral e extremamente gráfica é um dos pontos altos
Um dos elementos que ajudam a compor o retrato visceral do século XIV de O Último Duelo são as grandes batalhas que ocorrem durante o longa. E assim como em Gladiador, Ridley Scott não poupa esforços para chocar o público com cenas extremamente sanguinárias e gráficas. Mas claro, o artifício não soa apelativo. Ao contrário, ele ajuda a intensificar a atmosfera repulsiva de tempos antiquados.
Toda a violência — física e psicológica — encontra o seu clímax durante os últimos vinte minutos do filme, que poderia ser orquestrado apenas por um mestre do cinema como Scott.
Construção narrativa possui defeitos, mas nada que diminua a qualidade da experiência
A obra possui três capítulos, e cada um deles apresenta um ponto de vista diferente para o crime sofrido por Marguerite. Todavia, o constante vai-e-vem narrativo acaba prejudicando o ritmo do projeto, que se torna repetitivo por alguns instantes. Por outro lado, essa especificidade do roteiro amarra a mensagem central da trama e destaca a versatilidade do elenco. Desta maneira, entre erros e acertos, O Último Duelo não deixa de ser mais uma entrada impressionante para a icônica carreira de Scott.