Anna Elisabeth Michel, chamada carinhosamente de Anneliese (pronuncia-se “Anelise”) por familiares e amigos, era uma alemã jovem e cheia de vida como tantas outras entre o final da década de 1960 e início da de 1970. Quando tinha cerca de 16 anos, teve uma convulsão diagnosticada pelos médicos como epilepsia. Em seguida, começou a ter alucinações enquanto rezava, a andar nua e fazer as necessidades pela casa inteira e a sofrer de depressão a ponto de considerar seriamente o suicídio.
Anneliese foi internada em um hospital psiquiátrico e lá começou a tomar vários medicamentos tais como anticonvulsivantes, anti-epiléticos e antidepressivos, mas sem resultados efetivos. A depressão aumentou, assim como as alucinações – que Anneliese chamava de “faces do diabo”. Ela começou a ter aversões a cruzes e outros objetos tidos como sagrados e a ouvir vozes que diziam que ela estava condenada e iria para o inferno.
Vinda de uma família católica e muito religiosa, Anneliese solicitou à paroquia da pequena cidade de Klingenberg, onde vivia, que realizasse o ritual de exorcismo. A igreja, a príncipio, recusou o pedido, mas depois aceitou ao ver que o caso era sério. Dois padres foram designados para realizar o ritual. Durante dez meses, Anneliese foi submetida a várias sessões de exorcismo. Durante esse tempo, recusava-se a comer e, a seu pedido, os médicos foram dispensados.
Em 1 de julho de 1976, Anneliese Michel faleceu durante o sono. A autópsia revelou que a causa da morte foram desnutrição e desidratação causadas por semi-inanição ocorrida durante as sessões de exorcismo.
Logo após o falecimento de Anneliese, os padres comunicaram o óbito às autoridades locais que abriram inquérito em seguida. Os sacerdotes, assim como os pais de Anneliese foram a julgamento acusados de homicídio por negligência médica. O caso despertou grande interesse na opinião pública alemã.
Os acusados estavam convictos que Anneliese estava realmente possuída e apresentaram fitas de áudio gravadas durante os rituais - algumas dessa gravações eram mesmo perturbadoras. Porém, a corte não as aceitou como prova e todos foram considerados culpados, mas cumpriram a pena em liberdade.
O caso de Anneliese Michel foi a inspiração para o filme O Exorcismo de Emily Rose (2005), dirigido por Scott Derrickson (Doutor Estranho) com Jennifer Carpenter (série de TV Dexter) no papel principal. O filme pegou a crítica de surpresa, que elogiou os trabalhos de Derrickson e Carpenter, fez sucesso e inaugurou um novo gênero de filme: "Terror e Tribunal".
A partir daí, começou uma "exorcismomania", com uma série de filmes nessa linha, de qualidade variada, que iam desde o ótimo Réquiem (2006, também baseado na história de Anneliese, mas com uma visão cética), até o fraco Exorcistas do Vaticano (2015), passando pela franquia O Último Exorcismo (2010), chegando até o filme brasileiro Diário de Um Exorcista - Zero (2017), surpreendente sucesso no canal Netflix.
É seguindo esse gênero de filme que Exorcismos e demônios apresenta-se ao público.
Em uma igreja da pequena cidade de Tanacu, no interior da Romênia, uma jovem gritando deitada e presa em uma cruz é levada para uma sala pelo padre Dimitru (Catalin Babliuc, de A Última Bala) e quatro freiras onde é realizado um exorcismo. Durante o ritual, a jovem morre.
Em Nova York, a jornalista Nicole Rawlins (Sophie Cookson, da franquia Kingsman) fica a saber da história do padre e das freiras da Romênia que estão presos acusados de assassinato e pede ao editor do jornal, Philip (Jeff Rawle, de Harry Potter e o Cálice de Fogo), que também é seu tio, para ir ao local para investigar e fazer sua matéria. Philip reluta, mas acaba por concordar.
Ao chegar na Romênia, Nicole entrevists o padre Dimitru na prisão e, em seguida, o bispo Gornik (Matthew Zajac, de Um Lugar Solitário Para Morrer), que, quando soube o que acontecia em Tanacu, proibiu o padre Dimitru de continuar com o exorcismo da irmã Adelina Marinescu (Ada Lupu, de Eastern Bussiness).
Nicole vai até Tanacu para investigar o ocorrido e lá conhece o jovem padre Anton (Cornelius Ulici, de Escorpião Rei 4: Em Busca do Poder) a quem confessa que está em uma crise de fé após a morte de sua mãe. Nicole também entrevista a também freira e amiga de Adelina, irmã Vaduva (Brittany Ashworth, de A Revolução da Sra. Ratcliffe) e o irmão da falecida, Stefan (Iván González, de Perseguição Virtual). Enquanto faz estranha descobertas, é constantemente observada pelo sinistro menino Tavian (o estreante Florian Voicu).
Assim como O Exorcismo de Emily Rose, Exorcismos e Demônios também foi baseado em uma história real de um exorcismo ocorrido na cidade romena de Tanacu, mas não foi a primeira produção a abordar o assunto. Em 2012, o filme romeno Além das Montanhas, dirigido por Cristian Mungiu (4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias), também tratava do tema tendo recebido os prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Atriz - dividido entre as atrizes do filme, Cosmina Stratan (Shelley) e Cristina Flutur (Grain) - no Festival de Cannes, além de ser o candidato ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro naquele mesmo ano.
Obviamente que não há como comparar os filmes. Enquanto Além das Montanhas é um drama sério e um filme de arte, Exorcismos e demônios pretende ser um filme comercial de terror voltado para um público mais amplo - principalmente os adolescentes fãs do gênero. E é aí que derrapa na chicane.
O roteiro escrito por Chad Hayes (A Casa de Cera) e Carey W. Hayes (Terror na Antártida) está muito indeciso entre terror e suspense, pendendo mais para este. O filme até começa bem, com as investigações jornalísticas de Nicole, passando pela atração dela pelo padre Anton (estilo "quero, mas não devo"), mas não dá a devida importância ao julgamento do padre Dimitru e das freiras, o que poderia aumentar o interesse da trama ligando-o às investigações, e acaba por descambar na fantasia.
Uma outra falha do roteiro é a de mostrar a Romênia como um país agrícola, atrasado, semi-analfabeto e supersticioso, tendo apenas um pouco de civilização na capital, Bucareste. É verdade que em qualquer país, inclusive os do chamado "Primeiro Mundo", há regiões mais atrasadas em relação a outras, mas essa visão da Romênia mostrada em Exorcismos e demônios além de errada, é preconceituosa.
Um esclarecimento sobre a Romênia: devido à forte influência da então União Soviética durante o período do comunismo no país, muitas pessoas - inclusive no Brasil - acham que os romenos são um povo eslavo assim como os russos, ucranianos e poloneses. Mas, na verdade, os romenos são um povo de língua e cultura latinas, tal como aqui. O nome Romênia deriva de Roma, pois fazia parte do antigo Império Romano.
O cineasta Xavier Gens (Hitman: Assassino 47) tenta consertar as derrapadas de seus roteiristas. E até que consegue. Além de conseguir manter o interesse da platéia durante as cenas de investigação e suspense graças a um bom trabalho de direção, ainda consegue dar uns bons sustos, daqueles que mesmo quem já viu o filme sempre vai pular da cadeira ao rever as cenas. Só não consegue melhorar o final xoxo e clichê graças à genialidade do roteiro...
O elenco também ajuda a melhorar um filme que podia ter se transformado em um desastre total.
Sophie Cookson faz parte da nova geração de atores britânicos surgida nos últimos anos como seu colega em Kingsman, Taron Egerton (de Voando Alto), Lily James (Orgulho e Preconceito e Zumbis) e Luke Treadaway (Um Gato de Rua Chamado Bob). E não é à toa que é considerada uma revelação, pois consegue dar veracidade e endireitar uma história torta com uma interpretação bastante profissional e convincente.
Britanny Ashworth está bem como a irmã Vaduva, assim como Iván González no papel de Stefan. Os demais coadjuvantes não comprometem.
Reservei este parágrafo para falar da parte romena do elenco, que se tornou uma boa surpresa. Aliás, uma coisa boa do filme é ter a oportunidade de conhecer profissionais do ainda pouco conhecido (entre nós) cinema romeno. Corneliu Ulici, Catalin Babliuc, Ada Lupu e o menino novato Florian Voicu mostraram serem muito competentes e com boas perspectivas para uma carreira internacional - que Corneliu e Catalin já seguem.
Curiosamente, Corneliu fez, em 2012, um filme de tema semelhante chamado Filha do Mal, no qual também interpreta um padre e que é estrelado pela brasileira Fernanda Andrade (Why Am I Doing This?).
A fotografia de Daniel Aranyó (High School Musical 3: Ano da Formatura) é boa tanto nas cenas noturnas, sinistras e de tensão quanto ao mostrar as belas paisagens da Romênia e a não menos bela Bucareste. A música de David Julyan (A Cabana na Floresta), se não é excepcional, consegue dar o clima que o filme pede.
Exorcismos e demônios funciona mais como suspense do que como terror e perde a oportunidade de fazer um bom trabalho no gênero Terror e Tribunal, pois tem uma premissa interessante e um diretor e elenco competentes. Porém, tem bons sustos e faz a platéia ficar atenta à história. Em resumo, entre mortos e feridos salvam-se quase todos. Eu digo "quase" porque, se os roteiristas, da próxima vez, não fizerem um roteiro melhor, correm o sério risco de serem exorcizados...