Uma história de amor e pedofilia
por Bruno CarmeloNão demora muito para o público perceber que a garotinha sentada em frente a uma casa de subúrbio foi abusada sexualmente pelo vizinho adulto. Enquanto a câmera avança da fachada das casas para o interior dos lares – para a intimidade, para os segredos por trás das aparências – descobrimos o laço que conecta Una a Ray. O roteiro toma precauções para tornar a premissa menos maniqueísta: embora seja uma criança, a garota tem 13 anos (e não 6 ou 8 anos, o que traria um teor diferente) e pratica os atos voluntariamente; o vizinho não é mostrado como um tipo desprezível.
Isso não desculpa as ações de Ray (Ben Mendelsohn), é claro, mas dificulta os julgamentos sumários associados a este tipo de temática. Una é um filme sobre pedofilia, sobre estupro, sobre abuso sexual, mas também – e esta é a parte mais difícil de suportar – um filme de amor. Não há como negar que a pré-adolescente tenha se apaixonado pela figura paterna, enquanto o homem manifesta carinho genuíno por Una. É possível existir amor na violência? É possível que, apesar da moral e das leis, eles estivessem realmente apaixonados um pelo outro, e que ainda estejam na fase adulta? Pode-se desculpar o ato pelo consentimento mútuo, ou o consentimento de uma criança de 13 anos de nada vale?
O mergulho pelas zonas cinzentas de um tabu transforma este drama em suspense, quase um filme de terror. Benedict Andrews conduz seu elenco através de um xadrez sem vítimas nem mocinhos, apenas peças prontas a se atacar. A jovem Una (a excelente Ruby Stokes, alternando força e fragilidade) demonstra consciência do ato que está praticando. Ray defende-se pelo argumento do amor e do fato de jamais ter manifestado desejo por nenhuma outra garota dessa idade. Una adulta (Rooney Mara distante, de olhar vidrado, quase uma sociopata) está prestes a confrontá-lo com uma combinação de ódio e paixão em igual medida.
O cineasta faz questão de ocultar atos de violência ou nudez infantil. Tudo é sugerido ao espectador, de modo potente e claro, mas ainda assim distante dos enquadramentos. Andrews revela-se um exímio criador de climas, com uma câmera deslizando levemente pelas casas, os cômodos, aproximando-se das janelas ou afastando-se de uma cafeteria. O espaço da fábrica, onde se passa boa parte da história, é sublinhado pela ausência de cores, pela frieza e simetria, muitíssimo bem exploradas pela direção de fotografia. A estética acaba por acentuar o incômodo: estamos falando de amor, de estupro, mas com um distanciamento e uma elegância implacáveis.
Embora seja movido por um ato traumático no passado, Una prepara o espectador para um horror futuro, seja a possível vingança da garota sobre seu agressor, seja o possível ataque deste homem contra a jovem que o confronta, ou ainda o impacto da revelação nas famílias e no ambiente de trabalho. Cada um vai carregar esse peso para sempre, num equilíbrio precário prestes a ser desfeito – como provam as cenas paralelas dos protagonistas interagindo com os personagens de Riz Ahmed e Natasha Little. O pano de fundo social de precariedade financeira e capitalismo predatório torna a vida da dupla central ainda mais frágil.
Por fim, o trabalho pode chocar por uma série de razões: a sugestão do ato abusivo, a ideia de que confrontar o trauma pode torná-lo pior, a sugestão quase abjeta de que o envolvimento de um adulto com uma criança pode constituir um ato de amor. Mas ele o faz sem defender quem quer que seja, deixando que o espectador efetue todos os julgamentos necessários. A neutralidade da direção diante do abuso constitui ao mesmo tempo uma nobre isenção e uma perigosa condescendência. Cinematograficamente e politicamente, Una perturba os sentidos e a moral muito após o fim da sessão.