A poesia do futebol
por Bruno CarmeloReza a lenda que o país do futebol nunca conseguiu fazer um grande filme sobre este esporte. Algo no ritmo do jogo, no fervor da torcida não se transmitia em imagens, e o cinema não cumpria a tarefa de reproduzir a sensação de estar em um estádio. Mas chega às salas nacionais um filme muito bem-sucedido, justamente por não se incumbir desta perversa responsabilidade. Campo de Jogo funciona como uma homenagem ao esporte, sem tentar copiá-lo: o futebol possui uma linguagem, o cinema possui outra, e o diretor Eryk Rocha sabe que as duas estruturas só podem funcionar juntas se uma respeitar as especificidades da outra.
Munido deste respeito e reflexão iniciais, o diretor apresenta tudo que o arsenal cinematográfico é capaz de oferecer ao tema. Filmando uma partida do campeonato das favelas (ao invés de vangloriar os grandes clubes profissionais), Rocha constrói imagens belíssimas, excepcionalmente bem enquadradas e fotografadas. O cuidado com as imagens é tão grande que este documentário dá a impressão de ter maior refinamento estético do que muitas ficções, cujo universo é plenamente construído para a câmera. O olhar do filme está posicionado na canela dos jogadores, na pele de cada atleta, embaixo das mãos que se unem antes do jogo, nos céus, atrás do gol... O conjunto é de uma riqueza impressionante, tentando construir um olhar onisciente: todos os detalhes são dignos de atenção, desde a grama do estádio ao suor dos torcedores.
Este tipo de recurso foi usado recentemente por outro projeto brasileiro que buscava extrair poesia do esporte. São Silvestre, de Lina Chamie, misturava câmera lenta com música clássica, letreiros coloridos com cenas em preto e branco. Naquele caso, o conjunto resultava heterogêneo e ostensivo, mas Campo de Jogo não sofre desse mal: existe uma plena coerência atingida pela montagem. Ao invés de acelerar as imagens para criar um ritmo imersivo, Rocha prefere o distanciamento da lentidão: as imagens são oferecidas ao olhar do espectador com tempo para desfrute. O filme dissocia o som da imagem, apresentando cenas de jogos em câmera lenta acompanhadas de discursos dos técnicos aos jogadores. O resultado é estimulante e perfeitamente coeso.
Mais do que retratar o futebol, este documentário faz um tratado dos corpos em movimento, algo que aproxima o esporte da dança, e da própria essência do cinema. O filme funciona como um estudo do deslocamento, representado pelos embates entre corpos ao longo do jogo (vide o excelente tango entre os jogadores furiosos e o juiz acuado). Nenhum atleta tem nome ou história, já que esta não é uma experiência pessoal: o filme busca a universalidade, o deleite estético que supera a mera reprodução da realidade. Eryk Rocha faz um filme-construção, filme-poesia, no qual o futebol é o meio, nunca o fim. O aquecimento, o treino, o jogo, a torcida, tudo integra um ritual não muito distinto do êxtase religioso.
Neste sentido, Campo de Jogo ultrapassa as suas qualidades visuais para se tornar um interessante retrato social. Desprovido de narração ou depoimentos, apostando apenas na observação atenta e no uso magistral da edição de som, o documentário transparece a relação entre esporte e cristianismo, esmiuçando as ligações entre sucesso e devoção, ou entre esforço e recompensa prometidos pela fé católica. Retrata-se a pobreza, a condição de vida nas favelas cariocas, o sentimento de pertencimento inerente à comunidade, as hierarquias sociais e a importância do esporte como evento social e cultural. Combinando leveza e rigor, exigência estética e social, Campo de Jogo representa um dos retratos mais complexos que o cinema já efetuou sobre o esporte.