Há 75 anos atrás, na madrugada de 14 de junho de 1941, mais de 40 mil pessoas foram deportadas da Estônia, Letônia e Lituânia. Esse foi o começo dos banimentos em massa à Sibéria e a outras regiões remotas da URSS promovido pelas autoridades soviéticas. Sob ordens secretas de Stalin, essa operação tinha por objetivo afastar de seus países de origem os dissidentes do regime socialista de modo a aplacar qualquer oposição, além de promover uma limpeza étnica da região. Entre essas milhares de pessoas deportadas estava Erna Tamm (Laura Peterson) e sua família (filha e marido). O filme Risttuules (no original) ou Na Ventania (em português) foi inspirado nas cartas de Erna escritas da Sibéria para o seu marido, Heldur (Tarmo Song), de quem foi separada pelos soviéticos.
Em seu primeiro longa-metragem, o diretor estoniano Martti Helde foi ousado em sua proposta: realizar um filme de arte, em preto e branco, através da técnica dos tableaux vivants, para recriar fotograficamente as lembranças descritas nas cartas. Em oposição à tradicional narrativa cinematográfica em movimento, o tableaux vivant utiliza-se de planos estáticos, com personagens parados enquanto a câmera percorre lentamente o ambiente. O momento observado é congelado, permitindo dar enfoque aos detalhes sutis de cada cena, assim como às expressões dos atores e sua linguagem corporal. Tudo nos leva a acreditar que estamos diante de uma representação fotográfica comum, que só é desmentida por conta do vento que movimenta alguns objetos, como peças de roupa, galhos e folhas de árvores ou folhas de papel. A narração em off de Laura Peterson complementa a recriação dessas memórias, descrevendo eventos e os sentimentos da protagonista.
Erna Tamm levava uma vida normal e feliz com sua família até o momento em que a guerra entrou em suas vidas. Para retratar essa mudança radical e abrupta, o tempo passou a transcorrer em outra dimensão, sendo demarcado pela composição das imagens tableaux vivants. E ele assim permaneceu até o fim desse período trágico e angustiante na vida da protagonista, quando a guerra chegou ao fim. Ao longo de toda essa jornada, contemplamos as crueldades soviéticas, com os deportados sendo transferidos em condições desumanas dentro de vagões de animais, sofrendo humilhações, sendo submetidos a trabalhos forçados, fome, frio, além de perder parentes, amigos e acima de tudo, a liberdade. A trilha sonora e os sons ambientes ajudam a caracterizar o clima de lamentação e melancolia do filme: quase toda a esperança foi perdida.
O drama humano vivido pelos habitantes dos países Bálticos resultou em mais de 590 mil vítimas do holocausto durante a ocupação soviética. Com o desmembramento da URSS, a Rússia, sua sucessora, além de manter uma retórica que nega os crimes cometidos, ainda glorifica o passado soviético, seus líderes, símbolos e ações.
Esteticamente impecável, de caráter contemplativo, como toda obra de arte se propõe a ser, e com um ritmo lento, Na Ventania definitivamente não é um filme para o grande público. A forma como é narrado foge do comum e pode não agradar a todos os gostos, provocando estranheza e monotonia em alguns espectadores. Muito além da história que se propõe a contar, o longa permite uma experiência sensorial única, que ao mesmo tempo é triste e bonita.