Demorou, sim. Ainda bem.
por Aline PereiraQuando as primeiras notícias sobre um filme solo da Viúva Negra surgiram, a grande pergunta veio na mesma hora: por que levou tanto tempo? Não é difícil refletir sobre alguns motivos - das prioridades da Marvel entre a lista enorme de lançamentos do estúdio aos questionamentos sobre a força que Natasha Romanoff teria sozinha nas telas. Com Scarlett Johansson se despedindo da personagem em 2021 após uma série de adiamentos, a demora foi recompensada e a história contada só existe porque foi feita agora e não há dez anos.
Os acontecimentos de Viúva Negra se passam entre Capitão América: Guerra Civil e Vingadores: Guerra Infinita, quando o grupo de heróis dá um tempo na relação após se desentender quanto ao Acordo de Sokovia. Neste meio-tempo, Natasha parte para um acerto de contas com o passado e, de volta ao “lar”, descobre que assuntos que ela pensava ter encerrado ainda estão (muito!) abertos: o programa secreto que a treinou para se tornar uma máquina assassina ainda existe e faz novas vítimas.
Como construir uma história que já sabemos como termina?
A diretora Cate Shortland se enquadra na linha da Marvel quanto à escolha de cineastas indies para suas obras, como Taika Waititi (Thor: Ragnarok), Anna Boden e Ryan Fleck (Capitã Marvel) e, mais recentemente,Chloé Zhao (Eternos). Com a experiência em histórias mais intimistas, ela tinha nas mãos um material delicado para trabalhar.
Muitas das informações sobre a Viúva Negra já estavam estabelecidas no Universo Cinematográfico da Marvel, incluindo, é claro, sua morte trágica em Vingadores: Ultimato. Para encaixar uma nova história em meio a tantos pilares já sólidos, a escolha foi olhar para dentro e expor todas as vulnerabilidades que Natasha não tinha mostrado até o momento da linha do tempo em que o filme se passa e que revelam camadas longe da sexualização apontada por Scarlett Johansson em seu início na Marvel.
Com isso, um clima Jason Bourne (ou Capitão América 2 - O Soldado Invernal, para manter tudo em casa) e as bem-coreografadas sequências de ação fazem uma ponte entre o mundo exterior e as emoções de Natasha. A forma como a protagonista lida com os conflitos, no mais absoluto silêncio ou nas mega explosões e helicópteros destruídos, conversam diretamente com o que ela está aprendendo. Mais do que isso, o filme se esforça para convencer o público de que o sacrifício em Vingadores: Ultimato fazia sentido.
A escolha por uma trama condensada foi uma boa saída para não mexer muito na estrutura que veio antes e depois e mesmo sendo uma história intermediária, não deixa a sensação de uma experiência incompleta. Justamente por sublinhar tanto o lado emocional de Natasha, o filme torna fácil a identificação, a compreensão dos dilemas e a trama funciona bem de forma independente - é claro que quanto mais por dentro do Universo Marvel o espectador estiver, melhor, mas o público casual não vai ter problema algum para se conectar também.
História de origem? Não muito.
O ponto de partida é a pré-adolescência de Natasha, vivendo com os pais e a irmã mais nova em uma casa no subúrbio de Ohio, nos Estados Unidos. Em poucos minutos do filme, o flashback termina e somos transportados para 21 anos no futuro, quando o restante da história se passa. Nada de treinamento na Sala Vermelha e nada das cenas de balé e aulas de tiro que vimos nos flashbacks da personagem em Vingadores: Era de Ultron. Os detalhes da vida de Natasha como espiã antes da S.H.I.E.L.D começaram e terminaram sendo um mistério.
A escolha é incomum para um enredo de filme-solo, que em geral nos conta como o personagem se tornou o herói. Talvez, no caso de Viúva Negra, a falta dessa parte seja resultado dos onze anos na Marvel: já a vimos tantas vezes que a conexão ao público está formada com informações o suficiente para preencher, na imaginação, as lacunas dessa história de origem.
Todos os cacos do passado de Natasha que recolhemos ao longo do tempo deixam clara a infinidade de acontecimentos terríveis que marcaram a história dela e parecia que finalmente havia chegado a hora de ver tudo isso acontecer ao vivo. Mas o que Viúva Negra faz aqui é dar mais informações (valiosas e surpreendentes, é verdade) para diminuir esses espaços, mas a versão estendida dos fatos não veio.
Fez falta. Não para o arco da personagem, mas por deixar nebulosa uma história que vem sendo pincelada há tanto tempo. E que fiquemos satisfeitos com o relato de Natasha sobre o que aconteceu entre ela e o Gavião Arqueiro em Budapeste.
Uma história de família
“Para quem não tinha nenhuma família, agora tenho duas”, diz Natasha se referindo aos Vingadores e ao grupo de novos personagens que conhecemos em Viúva Negra. David Harbour, Rachel Weisz e Florence Pugh formam um clã engraçadinho e mortal ao mesmo tempo e a escolha do elenco é tão certeira que é uma pena que não tenham sido mais explorados na história. Tudo bem, não são o centro da aventura, mas são peças fundamentais - e com carisma demais para ficarem tão à sombra.
Harbour interpreta o Guardião Vermelho, uma espécie de “cópia russa” do Capitão América ou, ao menos, é como ele se vê. O ator de Stranger Things fez um bom trabalho com o tempo de tela que ganhou, mas o jeito canastrão e sotaque caricato que Hollywood nunca deixa morrer funcionariam melhor se tivéssemos mais tempo para simpatizar com ele de alguma forma. O mesmo vale para Rachel Weisz - o papel no desenrolar da história é crucial, mas faltou ir um pouco mais fundo para que ela fosse indispensável também para o público.
Florence Pugh, por outro lado, plantou com sucesso sua semente para o futuro do Universo Marvel. Vinda de tramas densas como Midsommar e Lady Macbeth, a atriz equilibra bem o humor inocente e a atitude estourada de Yelena Belova. Somando-se à boa química com Scarlett Johansson, de quem recebe o bastão como Viúva Negra, não é difícil apostar em uma jornada bem-sucedida para ela entre os heróis e, quem sabe, em uma nova leva de Vingadores da Marvel.
Temática atual
À medida em que descobrimos mais sobre o treinamento das viúvas negras, se desenha também um paralelo direto e mais cristalino impossível com o abuso contra a mulher. Manipulação e tortura psicológica fazem parte do processo que transforma as jovens meninas em bombas atômicas, a custo de sua liberdade física e mental. Nesse contexto, vemos as consequências do abuso sob diversas lentes.
Enquanto Natasha conseguiu se livrar dessa dinâmica há muito tempo e ainda lida com traumas, cuja culpa é o principal traço, Yelena acaba de se libertar de uma prisão emocional e sai com uma revolta incontrolável. Uma combinação poderosa e que deixa uma boa despedida para a Viúva Negra que não aconteceria em outras épocas porque é um fruto de seu tempo. Ainda bem.