Poema dos excluídos
por Bruno CarmeloEste é um drama português de difícil classificação. Ele pode ser considerado uma ficção por sua estrutura narrativa, mas trabalha com não-atores, que interpretam para as câmeras uma versão possível de si mesmos. Trata-se de um grupo muito curioso de personagens, com destaque para Ventura, um homem pobre, com distúrbios psíquicos e problemas neurológicos, e Vitalina, uma colega de hospital, que acredita ter perdido o marido em confrontos com o exército, apesar das claras evidências de que o homem continua vivo. Os dois se cruzam e conversam sobre as suas dores.
As imagens constituem o grande espetáculo deste filme. Trabalhando com rigor incomum para a mistura documentário-ficção, o cineasta Pedro Costa compõe cenas magníficas, mergulhando seus personagens em cenários de um escuro profundo, iluminando apenas os trechos do rosto e do corpo que lhe interessam. Com o formato de tela mais próximo do quadrado, cada cena lembra uma fotografia estática, ou ainda uma pintura renascentista. Os raros diálogos e movimentos dos personagens reforçam o parentesco plástico com a pintura, através de efeitos controlados por Costa na pós-produção.
Apesar de tamanho estetismo, o aspecto humano nunca é deixado em segundo plano. A câmera persegue cada inquietação de Ventura, Vitalina e Tito Furtado. Eles têm tempo para se expressar, ou para apenas permanecer em silêncio, com os olhares perdidos e marejados. Ambos refletem sobre as origens ainda mais pobres no Cabo Verde, sobre a dificuldade de se adaptar a Portugal, sobre a presença do exército nas ruas. A cena do encontro entre um tanque de guerra e o protagonista fugido do hospital, por exemplo, é fenomenal.
Nesta mistura tênue entre realidade e fantasia, entre documentário de ficção, Costa permite-se aventurar pelo gênero musical. Em dois momentos, os personagens cantam as suas tristezas, enquanto a câmera aproveita para revelar o interior de outros casebres, os rostos de outras pessoas em situações miseráveis. Nestas cenas, Cavalo Dinheiro assume mais explicitamente o seu tom engajado e político, dando visibilidade ao conjunto de moradores da favela, que encaram a câmera e exibem o interior de suas casas com toda a franqueza.
É muito difícil construir um filme ao mesmo tempo político e poético, engajado e esteticamente ousado. Pedro Costa consegue combinar esses aspectos de modo radical, construindo uma obra de beleza única. Talvez o conjunto seja hermético e monótono demais para a maioria dos espectadores, mas o desafio de seu ritmo lento é o preço a pagar pela recompensa que as imagens têm a oferecer.
Filme visto no 19º Cine PE Festival Audiovisual, em maio de 2015.