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    A Vida de uma Mulher
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    A Vida de uma Mulher

    O melhor da literatura e do cinema

    por Bruno Carmelo

    Entre as adaptações cinematográficas, a ideia de fidelidade ao livro original costuma ser associada à reprodução dos acontecimentos. Mais especificamente, vemos uma série de adaptações de verbos: ele chegou, ela se apaixonou, ele partiu, ela suplicou, ele voltou etc. Poucos diretores de cinema levam em consideração que o livro é muito mais do que sua história: os textos contêm um estilo, um tempo, uma poesia, um agenciamento especial das palavras. A boa adaptação deveria considerar estes aspectos tanto quanto qualquer reviravolta do texto.

    É isso que encontramos no surpreendente A Vida de uma Mulher. Stéphane Brizé, cineasta apaixonado por sistemas morais que resultam na culpa e na opressão (vide Mademoiselle Chambon, O Valor de um Homem) decidiu adaptar o extenso romance de Guy de Maupassant. O resultado poderia se prestar ao melodrama, com uma quantidade expressiva de traições, abandonos, nascimentos e mortes. A trama, passada ao longo de mais de vinte anos, também se prestaria aos exageros. No entanto, Brizé decidiu que a história já tinha recebido versões tradicionais o suficiente (foram três filmes baseados na mesma obra antes deste) e propôs um desafio: seu roteiro se dedica às causas e consequências dos conflitos, ignorando os próprios conflitos.

    Assim, Jeanne (Judith Chemla) conhece o novo vizinho, o visconde Julien (Swann Arlaud). Ninguém se apaixona à primeira vista, mas devido às idades próximas de ambos, uma união parece conveniente aos valores da época. Na cena seguinte, eles estão casados, discutindo os custos da lenha para aquecer a mansão. Outro exemplo: um homem caminha tranquilamente por um jardim. Na cena seguinte, a protagonista passeia pelo cemitério e lemos na lápide que aquele personagem morreu. O efeito é curioso: ao evitar as catarses, o cineasta consegue transmitir a monotonia e a passividade em que vive Jeanne. Devido aos hábitos religiosos e patriarcais, ela não trabalha e passa os dias entediada em sua casa. Quando o marido a trai, a responsabilidade de manter o matrimônio recai sobre ela.

    A Vida de uma Mulher foi criticado por não adotar um “ponto de vista político”, segundo parte da crítica francesa. Ora, ao invés de tornar a protagonista uma pobre vítima, transformando o marido num vilão, o roteiro prefere descrever, de maneira explícita, como todos são frutos de uma mesma lógica social: a mãe de Jeanne é a primeira a defender que a filha reate com o companheiro adúltero, enquanto o pai demonstra pensamentos mais progressistas. As figuras desta história são tridimensionais, complexas, isentas de julgamentos pelo olhar do diretor, que prefere deixar a análise a cargo do espectador.

    Esteticamente, o projeto alia maestria técnica e subversão de clichês. Optando por um raro formato de tela 1:33/1, próximo do quadrado, Brizé rompe com o fetiche das paisagens que costuma acompanhar romances de época. A fotografia, belíssima, transmite o calor e o frio de maneira simples, impressionista. Um tema musical aparece em momentos pontuais, desenvolvendo-se e sublinhando cenas específicas. O som fora de sincronia, com diálogos sobrepostos a imagens de Jeanne caminhando sozinha, despertam um tom etéreo, desconectado da realidade, como se a história se passasse na eterna melancolia. O cineasta buscou as melhores ferramentas da linguagem cinematográfica para criar uma atmosfera densa e inerte, que condiz com o tom criado por Maupassant.

    Talvez a narrativa se arraste um pouco no terço final, quando os saltos temporais são maiores e mais frequentes. Algumas soluções visuais se repetem (o uso do verão para os momentos felizes, e do inverno úmido para a decadência financeira da personagem), mas nada que retire o grande impacto visual e narrativo de um filme tão ousado, a partir de um material convencional. Jean-Luc Godard, quando adaptou O Desprezo, quis provar que era capaz de fazer um filme bom a partir de um romance ruim. Brizé, por sua vez, parte de um material muito melhor, mas comprova que é possível ler uma mesma obra de maneiras muito distintas, trazendo um resultado fiel à essência do livro enquanto permanece autoral e atualizado ao cinema do século XXI.

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