E se Jesus Cristo fosse gay?
por Bruno CarmeloRecentemente, o jornalista Leonardo Sakamoto sugeriu num artigo que Jesus Cristo, nos dias de hoje, seria uma transexual negra e pobre. O argumento foi considerado escandaloso por grupos religiosos e conservadores, que viam nesta imagem uma simples difamação da fé cristã. Ora, por trás da evidente vontade de choque, a comparação tem uma finalidade simples: a de interpretar Jesus Cristo como símbolo de um grupo perseguido e crucificado devido à incompreensão alheia. Sakamoto via nos homossexuais, transexuais e negros os novos párias sociais.
O filme francês Little Gay Boy: A Triptych (formando a sigla LGBT, claro) fornece uma ilustração deste pensamento. Unindo três curtas-metragens do diretor Antony Hickling, o longa-metragem imagina uma prostituta arrogante e obesa (Amanda Dawson), recebendo de um anjo a mensagem de que carregará o filho de Deus. “Ele se chamará veado, e será cuspido e humilhado, até morrer. Mas não se preocupe: três dias depois, ele vai ressuscitar”, garante o anjo. Assim surge Jean-Christophe, conhecida como “JC”, e interpretado com inocência por Gaetan Vettier. O garoto um dia encontra seu pai, Deus (Manuel Blanc), com quem mantém uma relação incestuosa. A narrativa é dividida em "concepção", "crucificação" e "Santa Ceia".
É bom avisar que, apesar desta aparência trash, o filme não é uma comédia de escárnio, nem parece movido pela simples vontade de ofender ou chocar. A trama se leva a sério, sendo construída com belas imagens pelo diretor sul-africano. O cineasta toma o cuidado de temperar as duras cenas realistas (de humilhação, agressão sexual, incesto) com momentos poéticos de canto, dança contemporânea e body art. O sofrimento psíquico do garoto torna-se físico nestas outras artes: o dançarino parece sangrar enquanto dança, e um homem introduz várias agulhas no próprio rosto à medida que JC é agredido.
As metáforas se encarregam de aliviar o peso indicial das cenas realistas. O teor experimental da montagem, do som e dos enquadramentos transforma a obra em um grande sonho (ou pesadelo?), devidamente separado do registro documental ou representativo da história religiosa. Este é um filme consciente de sua subversão, mas acima de tudo preocupado com a sua mensagem, e com a sua estética. O fato de forma e conteúdo caminharem de mãos dadas é um trunfo memorável em uma obra tão centrada sobre sua premissa escandalosa.
Nem todos os símbolos fornecem uma clara leitura ao espectador (o que fazem os deuses indianos nesta história?), mas servem para compor um mosaico voluntariamente heterogêneo e livre. Há muito a se apreciar, e também muitos aspectos questionáveis nesta obra de excessos. Hickling leva a fundo a sua proposta, explorando as possibilidades artísticas do tema sem a preocupação de tornar a obra mais palatável. Como resultado, Little Gay Boy sequer entrou em circuito comercial, nem mesmo no seu liberal país de origem, a França. Mas este filme surpreendente deixa uma porção de imagens fortes na cabeça, uma impressão de estarmos assistindo a uma união de radicalismo político com radicalismo artístico, como nos bons filmes de antigamente.
Filme visto no Rio Festival Gay de Cinema, em julho de 2015.