A revolução que nunca acabou
por Taiani MendesDrama dirigido e roteirizado por Margarida Cardoso, Yvone Kane apresenta um amargo retrato da sociedade moçambicana contemporânea. Adotando o ponto de vista de mulheres brancas ligadas ao Partido Socialista, a cineasta conduz a trama difusa em ritmo vagaroso que entedia rapidamente, apesar da interessante proposta de reflexão sobre desilusão política e fim de utopias.
Se recuperando da dor de perder a filha pequena, Rita (Beatriz Batarda) começa uma investigação sobre os últimos dias de Yvone Kane (Mina Andala), famosa militante do movimento revolucionário moçambicano. A pesquisa a leva de volta ao país lusófono em que nasceu, terra onde ainda vive sua mãe, a médica Sara (Irene Ravache), companheira de luta e amiga pessoal de Kane. Através das familiares (mais Jaime, órfão negro adotado por Sara após a destruição de sua tribo), é discutido o não pertencimento.
Doente, a médica marxista que trabalha com freiras encara finalmente a dissolução de sua fantasia igualitária e se dá conta de que mesmo morando ali há anos, amando a terra e tendo arriscado sua cabeça por aquelas pessoas, jamais deixará de ser vista como forasteira ou ao menos convidada para visitar a casa de um amigo. É como se seu chão fosse arrancado, ao passo que Rita, por outro lado, vive a experiência de aliviar o trauma pessoal conectando-se ao país e sua história recente.
As protagonistas surgem diante de vidros e espelhos evidenciando a crise identitária e de quebra a semelhança física, proximidade presente também na sisudez e dor materna – Rita pela trágica morte, Sara pelo desleixo com Jaime e por jamais ter sido perdoada pelos filhos biológicos, de quem se afastou por segurança ainda na fase de crescimento. Tais feridas abertas e profundas são palpáveis e evidenciadas pelas interpretações contidas de Batarda e Ravache, no entanto o roteiro não sabe como equilibrar os conflitos familiares e a solução do caso Yvone Kane, que recebe mais atenção, mas não chega a despertar o mesmo interesse no público. A jornada investigativa revela-se enriquecedora e desafiadora exclusivamente para Rita, pois os espectadores não são tocados pelo mito da guerrilheira mesmo com o esforço da diretora na sua representação icônica, imponente, misteriosa, destemida, bela e confiante que não é exatamente “apenas” isso diante de olhos mais atentos. Admiramos a lendária guerreira à distância, sem motivação convincente para ressuscitá-la.
O relacionamento entre as protagonistas de pele clara e o povo moçambicano predominantemente negro é frio e carregado de tensão, especialmente quando há alguma relação de poder envolvida. Comentado somente quando uma personagem diz que teve sua foto retirada da exposição do destacamento feminino do Partido Socialista por não ser negra, o óbvio “desconforto” racial é outro tema que não merecia ficar tão à margem do foco, da mesma maneira que é complicado entender o abuso sexual infantil jogado para discutir conivência e tribalismo.
Internamente nas sombras como o contraluz bastante usado, as personagens principais surgem com frequência presas em divisões dentro do quadro, ressaltando o isolamento pelas ligações rompidas. A fotografia é bem resolvida, mas o mesmo não pode ser dito do roteiro, recheado de diálogos duros (e às vezes também de difícil entendimento, pela ausência de legendas) e bruscas mudanças de comportamento e opinião sem qualquer preparação, deselvolvimento ruim que prejudica em particular a Sara de Ravache, que talvez por isso não consiga entregar performance à altura de seu conhecido talento.
Os fantasmas do passado instigam Rita, enganam Sara e adormecem o público. Alguém diz em cena que “paz não é silêncio” e uma boa frase do tipo sobre Yvone Kane seria “longa duração não equivale a aprofundamento”.