Elvis – A jornada do Herói, do surgimento até a eternidade
Elvis (2022), escrito, produzido e dirigido luxuosamente por Baz Lurhmann não pode ser descrito como uma cinebiografia normal sobre Elvis Presley. Criar um filme sobre a vida de um cantor, ator, showman e entertainer tão revolucionário e engajado socialmente quanto Elvis não poderia ser feito de uma forma normal, tal como a vida de Elvis não foi uma vida normal.
A Jornada do Herói, estabelecida por Joseph Campbell, famoso escritor e estudioso de mitos, é uma sequência padrão de etapas e formas de contar uma história que há décadas é adotada em produções fantásticas.
As sagas Star Wars, Harry Potter, Senhor dos Anéis e os primeiros filmes solos dos super-heróis do império Marvel eram as principais representações de receitas milionárias construídas a partir dessa “regra mágica” até que Elvis, de Baz Lurhmann, foi lançado nos cinemas.
Fã de super-heróis dos antigos quadrinhos quando criança, a história sobre Elvis Presley é contada no mais novo filme sobre sua vida de um modo inspirado fortemente nesse interesse.
Elvis não é uma cinebiografia, não é um filme sobre a história da música ou mesmo da cultura norte-americana, mas sim uma história de super-herói que permeia esses assuntos.
A questão é que diferente de muitos quadrinhos, a história do filme realmente aconteceu – ao menos em 99% dos fatos.
Nas 2 horas e 40 minutos de filme somos apresentados ao “mundo comum” do aspirante a herói, o “chamado à aventura” que ele recebe, a recusa, as provações e todas as etapas do modelo padrão e quase gasto da Jornada do Herói de contar histórias. Porém, até nisso temos algumas inovações.
Contado não sob um ponto de vista onisciente, nem sob o ponto de vista do próprio Elvis e nem mesmo de forma inteiramente linear, a obra é narrada na perspectiva do personagem que é o sábio mentor do herói e ao mesmo tempo o ardiloso vilão, seu empresário, Coronel Tom Parker, interpretado por Tom Hanks.
Caracterizado com muita maquiagem e diversas próteses, Hanks, fazendo o papel do empresário visto em tela atua com uma perniciosidade sentida só de olhar em seus olhos.
Expondo e cativando o público com fatos sobre a vida de seu “garoto protegido” e fonte de sua parasitária exploração de renda, o Coronel altera a ordem das etapas dessa famosa Jornada do Herói ao tratá-la como um mea-culpa e uma tentativa de justificar suas manipulações no que pode se chamar de seu longo leito de morte.
Os principais fatos históricos sobre Elvis e o início de sua vida junto com a família são apresentados com clareza, mas toda a obra se baseia a partir do momento que o Coronel, o narrador, conhece o promissor jovem artista.
Chaydon Jay interpreta a versão da infância pobre do artista. Ainda que com uma participação breve no longa, o rapaz transmite de forma estratégica e enérgica sua atuação como um jovem Elvis na fase inicial da formação de sua adoração religiosa pela música negra do sul dos Estados Unidos, onde o cantor foi criado, e sua paixão radical pela religião.
Como muito bem demonstrado em uma cena de cerimônias religiosas famosas do sul dos EUA, o jovem Elvis (Chaydon) realmente aparenta ter o “espírito nele”.
Seja o espírito santo ou mesmo o de seu irmão gêmeo que nasceu natimorto, motivo pelo qual Elvis sempre pareceu ter a força de 2 homens em sua alma, segundo sua mãe, algo de muito poderosos fazia parte do ser do jovem rapaz, e o filme apresenta isso muito bem desde o começo.
Essa religiosidade com a qual Elvis cresceu e sempre usou para se recuperar após momentos difíceis na vida, é passada para o verdadeiro Rei desse filme, Austin Butler, que incorpora o Rei do Rock e dá vida à obra de Baz Luhrmann.
O ator norte-americano aceita e se entrega por completo ao trabalho de interpretar magistralmente quase 30 anos de carreira e vida de Elvis Presley.
Impressionando com o incrível trabalho vocal e convencendo de que era Elvis em pessoa com o trabalho de corpo, Austin parece ter sido possuído pelo espírito do Rei enquanto gravava o longa repleto de danças, requebrado, golpes de karatê e trejeitos de realizar as espetaculares performances.
Nos trazendo drama, excitação, raiva e carisma, a atuação encantadora do rapaz nos momentos de palco e no desenvolvimento do personagem no “mundo comum” do longa, nos transmitem e nos permitem sentir as mesmas emoções que constam em cena.
Passando desde os anos 50 até os anos 70, Austin mostra Elvis como um jovem inocente, humilde e tímido – mas com um estilo espalhafatoso – até o ícone rebelde repleto de sex appeal que literalmente transformou a forma de fazer shows ao vivo e na Tv nos EUA, além do Elvis gospel e country.
Como a obra demonstra, o Elvis logo na década de 50 já começou a inspirar artistas da época – e artistas que temos surgindo ainda hoje – bem como desbancou um punhado de outros artistas que se acomodaram na forma de fazer apresentações. O rapaz transformou sessões monótonas de música em verdadeiros espetáculos sem precedentes, entrando em conflito com os políticos, a polícia, os pais dos jovens da época e os segregacionistas raciais.
O artista nasceu e cresceu em um meio que era tão natural para Elvis, mas que era discriminado pela sociedade branca tradicional.
Com lendas da música negra B. B. King (Kelvin Harrison), Arthur ‘Big Boy’ Crudup (Gary Clark Jr.), Big Mama Thornton (Shonka Dukureh), Little Richard (Alton Mason) e Sister Rosetta Tharpe (Yola), o longa ainda inclui os fatos históricos relacionados ao Martin Luther King Jr. e o assassinato do senador Robert Kennedy como grande estímulo na formação, no ritmo, nas emoções e decisões do Rei.
Demonstrando ao longo de calorosas cenas o contexto social, racial e cultural dos EUA, vemos como esses e outros fatores sempre fizeram parte das preocupações e influências sobre Elvis, assim como receberam tremendas influências de suas obras, pensadas para conscientizar o público.
No primeiro quarto do filme, até uma pequena porcentagem do próximo, a trama corre em um ritmo frenético e quase sem pausa para tomar fôlego em certos pontos. Condensando com glamour e fatos históricos os vários anos do início da vida de Elvis e logo a partir do momento que conheceu o Coronel Tom Parker, o narrador da obra, constam poucos momentos para refletir sobre o que é recortado e disposto na tela.
Os fatos desse trecho surgem em um ritmo suficiente para se entreter e até aprender, mas por pouco não sobrecarregam a atenção do público com a história, as excelentes músicas e todo o brilho presente nela.
Logo após esses instantes podemos usufruir de um ritmo mais fluído, podendo sentir as fortes emoções e realizações do artista, compreender os resultados de sua trajetória, da mesma forma que continuar apreciando as excelentes montagens de cena, fotografia, figurino e mixagem de som presentes durante toda a energia e sinergia do longa, desde ao estilo da abertura até os créditos finais.
Contando com canções originais e outras editadas de Elvis, além de uma dezena de produções de artistas da atualidade como Doja Cat, Eminem, a banda Måneskin, Diplo e Swae Lee, além da própria voz de Austin Butler, o filme comprova o impacto e a qualidade das canções do Rei cantadas por essas figuras na mesma intensidade das canções inéditas criadas por elas de forma inspiradas em sua obra.
Elvis é uma figura realmente endeusada. No filme e na vida real, o Capitão Marvel Jr e o Super-Homem não receberiam tanta aclamação quanto Elvis Presley já recebeu de diversas audiências que ultrapassavam o limite de show e tornavam-se adorações religiosas com um forte e incongruente apelo sexual.
Quem não conhece a história de Elvis, recebe informações e diversão o bastante para se dizer bem-instruído logo no começo, preparado para o que vem nas cenas seguintes e instigado a buscar mais detalhes complementares sobre o Rei após o fim do filme – a produção é sobre um homem que viveu 42 anos. Não é possível apresentar exatamente tudo em cena.
Já quem é fã do Rei do Rock, famoso que nunca saiu da boca e dos ouvidos do povo, talvez possa ficar saudoso por 2 ou 3 detalhes que são importantes na carreira do Rei como um pouco mais sobre seu tempo no exército, onde chegou a tornar-se sargento pelo seu trabalho duro, seus mais de 31 filmes para o cinema, sua espetacular e mundial apresentação no Aloha from Hawaii, o primeiro show via satélite do mundo – inventado apenas para Elvis a desejo (e autopreservação legal) de seu empresário.
Todos esses fatos são apresentados no longa. Na verdade, alguns deles são motivo de grande autopromoção do Coronel que se gaba desses feitos em sua narrativa, mas vê-los em mais tempo de tela também serviria para autopromoção do próprio público que exalta esses fatos sobre seu ídolo transcendental.
Ainda assim, tudo o que o filme mostra compensa em dobro e com muita qualidade os poucos detalhes que não chega a mostrar com tanta abrangência.
Sob o ponto de vista do empresário – que é anunciado como uma força sombria e contraditória logo no começo da história, ao som de Cotton Candy Land de Stevie Nicks – o artista poucas vezes era visto como uma pessoa real, mas era sempre a atração de um show que nunca devia parar e que devia ser explorado ao máximo. O maior show da Terra – por muitos anos, o mais lucrativo da Terra.
As etapas finais da jornada são marcadas por conflitos entre o herói, Elvis, e seu vilão manipulador, o empresário. Do mesmo modo, temos conflitos entre Elvis e quem é próximo a ele, assim como entre Elvis e ele próprio, inebriado, confuso e deprimido com os rumos que sua vida tão inovadora tomara nos últimos anos.
Se fosse possível, seria hercúleo e até maçante contar em cerca de 2 horas e meia de filme os detalhes de todas as realizações feitas ao longo de 42 anos de vida de um homem. Isso já seria difícil tratando-se da obra sobre uma pessoa comum, imagine então sobre Elvis Presley que foi quase tudo, menos um homem comum.
Baz, o cineasta australiano conhecido mundialmente por obras como “Romeu + Julieta”, “Moulin Rouge” e a adaptação reluzente de 2013 de “O Grande Gatsby” (vencedor do Osca de melhor figurino e melhor design de produção), perfeccionista e com trabalhos pomposos à sua maneira, é talvez o único diretor da atualidade capaz de retratar os estilos igualmente perfeccionistas, pomposos e desconstruídos do Rei do Rock.
Sempre com muito brilho, com figurinos coloridos, movimentos corporais que desafiavam as leis da moralidade e até da segregação racial dos EUA, e inovações tecnológicas a níveis descabidos para servir a um único homem, a superprodução cinematográfica e os próprios estilos de vida de Elvis Presley são adjetivos de um dicionário.
Extravagante, pomposa e espalhafatosa. Usando-se de neologismos, a palavra que poderia descrever melhor a obra seria “fantabulosa”. Algo tão fabuloso e fantástico que só existe na fantasia e na irrealidade, ainda que seja recheada de momentos que realmente ocorreram – para a surpresa de alguns.
Narrado pelo ilusionista empresário do cantor, o filme justa e coerentemente exagera certos fatos, mas nem por isso deixa de nos mostrar a febre exagerada, porém, verídica que Elvis provocou na juventude norte-americana, na dominante velha guarda e logo depois, no mundo todo ao longo de 3 décadas de carreira em vida.
Preocupado em “se” e “como” seria lembrado pelas pessoas após sua partida nos anos derradeiros, o fenômeno que surgiu para revolucionar e moldar muitos aspectos do mundo que tempos hoje, o showman Elvis Presley, talvez não tenha percebido o quão bem executada foi sua busca pela eternidade, ao menos no critério de carreira.
Cerca dos 5 anos finais de vida do cantor são deixados meio de lado no fim do longa, apresentados apenas como uma breve sequência do que já vinha surgindo pouco tempo antes, mas ainda surpreendendo e emocionando na forma de apresentar isso ao público.
Em sua carreira promovida, mas manipulada pelo Coronel para chegar e se manter no auge, a alma de Elvis, no posto de um Deus, debilitou demais seu corpo mortal, provocando preocupações de familiares e criações fantásticas para o mundo da música, mas talvez não no mesmo nível transcendental que foram as de seus anos anteriores.
Mais de 40 anos após sua “morte”, depois de diversos outras obras de sucesso sobre sua vida – incluindo a nominada a prêmios com Kurt Russell em 1979 e a premiada com Jonathan Rye Myers em 2005 – Elvis de 2022 é mais uma recente prova de que sua jornada do herói não terminou como muitas outras, vindo a influenciar centenas de artistas, moda, música, cinema e tecnologia não chegando ao fim, mas durando pela eternidade.
Em um único filme, podemos sorrir, nos divertir, dançar, chorar, sair aos prantos das salas de cinema com a história do Rei do Rock e a forma criativa e extravagante de Baz Lurhmann usada para contá-la e homenageá-la.