Um tiro no ´astrágalo´
por Renato HermsdorffNascida na Argélia, Albertine Sarrazin foi abandonada ainda criança e, em seguida, adotada e levada para a França. Porém, foi constantemente abusada por um membro da nova família. Apesar de boa aluna, a menina foi mandada para um reformatório em Marselha, mas fugiu para Paris para satisfazer seu gosto por literatura e acabou se prostituindo na Cidade Luz.
Por conta de um assalto malsucedido, foi parar na prisão, de onde escapou – quebrando um ossinho da perna, chamado astrágalo. Na fuga, conheceu Julien, por quem se apaixonou - e ao lado de quem viveu uma vida de crimes, até escrever o romance autobiográfico “O Astrágalo”, que se tornou um clássico cult. Mas tudo isso é Wikipédia.
O filme da francesa Brigitte Sy (mais conhecida por seu trabalho como atriz e mais famosa ainda por ser a mãe de Louis Garrel), portanto, é uma adaptação do livro e, por tabela, uma cinebiografia de Albertine. Porém, se você desconhecia por completo a vida/ obra da escritora até aqui, dificilmente vai se interessar pela personagem/ pessoa real depois de assistir ao longa-metragem que agora chega aos cinemas brasileiros.
Tomando como ponto de partida o momento em que Albertine sai da prisão, em 1957, o que se segue é um encadeamento de situações desconexas que, em comum, têm apenas o desejo da frágil protagonista de estar ao lado (“atrás” seria mais correto) do homem amado (e, mesmo ele, "some" sem explicação em diversos trechos do filme) – e nada de literatura, ok?
No roteiro assinado pela diretora (ao lado de Serge Le Péron), a heroína passa de fugitiva frágil à prostituta indiferente; de amante lésbica à mulherzinha ciumenta; sem que nenhum bloco necessariamente se comunique com o anterior, dando um aspecto tão enfadonho à produção, quanto o é a dificuldade de construir algum tipo de empatia (não há tempo hábil) pela personagem central. Núcleos pipocam e personagens aparecem e somem sem nenhuma contribuição para o arco (ou pelo menos, para a dramaturgia) da história. (O próprio Louis Garrel faz uma participação afetiva, como um fotógrafo que... sinceramente, não faz diferença saber).
Certamente a diretora partiu de uma boa intenção quando decidiu recuperar e transformar em filme o romance autobiográfico de uma mulher conterrânea. Mas o que se vê na tela é, em última análise, o retrato de uma desocupada cuja existência só se justifica ao lado do homem. Pode até ser que tenha sido assim com Albertine Sarrazin (a verdadeira), mas em tempos de empoderamento (para usar uma palavra da moda) feminino, o filme carece de uma contextualização melhor. Salva a linda fotografia em preto e branco de Frédéric Serve, que evoca (agora sim, com competência) outro ícone francês, a nouvelle vague.