Lugar de ninguém
por Bruno CarmeloO primeiro personagem apresentado neste filme não é a jovem francesa Joane (Philippine Stindel), nem a imigrante da Moldávia, Lisa (Ana Neborac). O espectador conhece inicialmente as Mercuriales, torres empresariais luxuosas ironicamente incrustadas na periferia pobre de Paris. Descobrimos os corredores, as saídas de emergência, a espessura dos muros, as câmeras de vigilância. Logo depois, adentramos o conjunto habitacional popular onde se passa grande parte da ação. As Mercuriales são vistas de noite, desocupadas, enquanto descobrimos que os prédios residenciais serão destruídos pela prefeitura.
Neste drama francês, os espaços são temporários, frios, pouco acolhedores. A solidez da arquitetura e a rigidez da segurança constituem ilusões: algumas portas das torres ficam sempre abertas, o papel de parede nos apartamentos esconde uma estrutura frágil e decadente. Esta cidade fantasma acolhe Joane e Lisa, duas garotas que se atraem menos por afinidade que por falta de opções. Elas não têm família próxima, nem muitos amigos. Também não possuem meios suficientes para saírem de casa sempre, nem para comprarem o que quiserem. Assim, sem pertencimento a qualquer grupo, a dupla deambula pelas noites.
Mercuriales é um filme estranho, no melhor sentido do termo. Por um lado, a estética busca a impressão de um sonho perdido: as cores azuladas da fotografia imprimem a noção de nostalgia, os planos abertos reforçam a sensação de vazio, a trilha sonora eletrônica lembra uma ficção científica pós-apocalíptica. Mesmo assim, as protagonistas são interpretadas com total realismo por duas atrizes não profissionais, em diálogos com ar de improviso, abordando questões pertinentes ao subúrbio francês. Racismo, machismo, precariedade social, o encontro entre cristianismo e islamismo são retratados de modo orgânico e complexo.
Em seu primeiro longa-metragem, o diretor Virgil Vernier busca o distanciamento em suas escolhas de som e imagem. Muitos diálogos ocorrem fora de sincronia com a imagem, os locais são vistos de longe, com lentes teleobjetivas, a paisagem é desumanizada. A captação em 16mm traz uma granulação atípica em tempos digitais, reforçando a melancolia. Principalmente, os laços são transitórios: Lisa e Joane se perdem, depois se encontram, a amiga Zouzou (Annabelle Lengronne) aparece e some na imagem, o guarda Tony (Sadio Niakate) pula de um emprego a outro sem que o espectador descubra o que ocorreu entre estas experiências. O tempo é fluido e os espaços são permeáveis, como se estivéssemos num sonho constante, numa associação livre de ideias.
Assim, temos um filme de temas contemporâneos, com ares de passado; um filme sobre os nossos tempos, com temas universais; uma câmera colada às duas garotas, mas que ainda permite mistérios e ambiguidades. As narrações em off de Lisa lembram os excelentes relatos de viagem de Sem Sol, enquanto a tristeza sedutora de Joane remete às obras femininas de Sofia Coppola (especialmente Encontros e Desencontros e As Virgens Suicidas). Mas Mercuriales tem sua própria personalidade.
Esta é uma obra que surpreende a todo o momento, apresentando repentinamente trechos em animação, a leitura de uma carta escrita à mão, uma cena de sexo explícito, sem que isso pareça uma malícia do diretor. Vernier corta as cenas em momentos que a montagem normal não cortaria, dissocia sons e imagens de modo que o cinema clássico evitaria. Acima de tudo, ele confere a essa cacofonia uma coesão estética notável e uma singela humanidade. O cineasta oferece uma obra de vigor, em busca de ineditismo estético e profundidade filosófica – duas qualidades bastante difíceis de atingir, especialmente num longa-metragem de estreia.