Um coração simples
por Bruno CarmeloPelo título e pelo material de divulgação, o drama francês promete se concentrar apenas na vida de Fatima (Soria Zeroual), mulher argelina divorciada que mora na França para proporcionar melhores condições de vida às filhas adolescentes. Após muitos anos na Europa, ela multiplica os trabalhos de faxineira e ainda não domina a língua francesa. Seu olhar triste é aquele do imigrante que sofre inúmeros maus-tratos cotidianos, mas aceita a configuração social por desconhecer seus direitos e duvidar da possibilidade de mudanças.
O projeto surpreende ao dividir a atenção entre Fatima e as filhas Nesrine (Zita Hanrot) e Souad (Kenza Noah Aïche), as três igualmente importantes para a história. Ao contrário das mães, as filhas nasceram em solo francês, falam a língua perfeitamente e se sentem integradas, mesmo que a origem magrebina seja fonte de preconceito. Ao contrapor duas gerações, o roteiro consegue refletir sobre as dificuldades de integração e sobre a sensação de não-pertencimento dos cidadãos de ascendência estrangeira. As cenas entre a mãe e as filhas são excelentes, pela variedade de línguas – a matriarca fala em árabe, as filhas respondem em francês – e pelo debate orgânico sobre o papel das mulheres nas sociedades árabes e cristãs.
O diretor Philippe Faucon conduz o seu projeto com simplicidade quase acadêmica. As cenas são sempre compostas por duas ou três personagens efetuando tarefas simples (preparando a comida, estudando na universidade, conversando com as amigas) enquanto os diálogos e as ações ao redor se encarregam de representar a França inteira, algo especialmente válido às vésperas de uma eleição presidencial na qual a presença de imigrantes se tornou um tema de destaque. Com seu estilo observador e plácido, o cineasta concede a cada personagem do trio central uma curta cena de catarse na qual exteriorizam a dor acumulada há muito tempo.
Em termos narrativos, a estudiosa Nesrine e a rebelde Souad funcionam como motores de conflito mais eficientes do que a própria Fatima. As garotas estabelecem a ponte entre o espaço público e privado, entre a tradição árabe e o desejo de namorar os garotos locais como qualquer jovem francesa. São elas que brigam e se impõem, enquanto a mãe fica restrita a uma função passiva. O roteiro demonstra piedade pelo fato de esta mulher se sacrificar em nome da vida alheia, mas não consegue olhá-la de outro modo que não seja o da mãe e trabalhadora: a questionável cena final sugere que a felicidade de Fatima será eternamente dependente das filhas.
Os melhores momentos do projeto vêm das cartas escritas pela mulher tímida, nas quais declara a um interlocutor inexistente, em árabe, o descontentamento silencioso e a nobreza do sacrifício diário. Existe poesia e qualidade artística nas veias desta mulher calada, mas talvez ninguém além do espectador descubra essas qualidades: Faucon permanece pessimista quanto às perspectivas de transformação social. Fatima é uma nova Macabéa, uma nova Félicité de Flaubert ou uma das heroínas de “coração de ouro” que Lars von Trier retratava no fim dos anos 1990. Uma mulher cuja existência singela esconde um vasto mundo interior.