A experiência do tempo e do espaço
por Bruno CarmeloJornada ao Oeste começa com um plano próximo do rosto de Denis Lavant. O enquadramento se aproxima ao máximo dos olhos, nariz e boca do ator, que enchem toda a tela, durante pelo menos cinco minutos. Ele permanece imóvel. Aos poucos, começaram as manifestações de exasperação na sala de cinema, com pessoas incomodadas, cansadas e mesmo ofendidas pela duração da imagem. Percebe que, com a velocidade das imagens contemporâneas, uma das experiências mais subversivas que se pode propor ao público está relacionada ao tempo.
Andy Warhol já realizou projetos ainda mais radicais quando fez seus filmes de oito horas, em que absolutamente nada acontecia. O intuito dessa provocação, dizia ele, era que as pessoas pudessem sair, jantar, voltar ao cinema e descobrir que não tinham perdido nada. Tsai Ming-Liang, longe disso, é menos conceitual e mais esteta, dominando plenamente as ferramentas narrativas e a linguagem cinematográfica. Em apenas quatorze cenas, ele apresenta um monge (Lee Kang-Sheng) que sai de seu mosteiro e visita a grande cidade de Marselha, na França. Não há diálogos, não há psicologia do personagem nem conflitos no caminho. Apenas o deslocamento de corpos no espaço.
Mas é justamente nesses movimentos que o filme encontra seu propósito e sua beleza. Com seu caminhar lentíssimo e ritmado, vestindo trajes religiosos, este personagem contrasta com a velocidade e as vestimentas ocidentais. A cena em que ele desce uma escada, por exemplo, é emblemática: diversos passantes descem e sobem os degraus rapidamente, manifestando grande incômodo com este homem, além da presença da câmera no local. A gravação sugere que existe algo especial para ser registrado, mas o foco da ação é a caminhada banal de um homem silencioso. O choque de culturas é muito bem representado pelo embate entre ficção e documentário.
Jornada ao Oeste assemelha-se ao “happening” artístico, à instalação que encontra na reação do público o seu motor criativo. O incômodo, no caso, é produtivo, é flagrante de uma experiência de um tempo e um espaço diferente do nosso, que já tomamos como natural. A obra efetua o movimento de recuo, de estranhamento. Para isso, Tsai Ming-Liang oferece também enquadramentos de rostos na horizontal, junto do horizonte, como se o corpo fizesse parte da paisagem, dominando o horizonte na mesma medida que as cadeias de montanhas. Quando o monge passa pela cidade, o mar é cortado por uma espécie de fundo infinito, e as ruas são retratadas no teto de um prédio. São cenas estranhas, belíssimas, que forçam o banal a adquirir uma aura singular, única. Como se a presença do monge anônimo bastasse para alterar a essência do ambiente ao redor.
A duração de Jornada ao Oeste é curtíssima - apenas 56 minutos. É difícil imaginar que um dia o filme seja mostrado no circuito comercial brasileiro, já que este tipo de experiência está hoje reservada aos museus e galerias de arte. Mas é interessante que a obra tenha sido exibida em uma tela de cinema, no mesmo festival que também exibe blockbusters de Hollywood - a surpresa dos espectadores desprevenidos não teria a mesma proporção no ambiente solene de uma galeria. Parte do público parece ter rejeitado a obra, e melhor assim: apenas a indiferença seria uma reação realmente triste diante de um projeto tão radical e ambicioso.
Tsai Ming-Liang conclui o filme com uma citação, sugerindo que as coisas no mundo existem apenas pela presença do olhar humano. Esta é uma das discussões ontológicas mais importantes da estética da imagem: a presença do olhar valida a existência das pessoas e dos objetos? A vista humana justifica a presença do mundo ao redor? Se ninguém observasse o mundo, ele existiria? Se uma linda obra de arte ficar trancada em um quarto e ninguém jamais a vir, ela ainda é arte? A obra provocadora se fecha com mais uma ousadia, desta vez de cunho filosófico. Em pouquíssimo tempo e poucas imagens, o cineasta constrói uma pequena pérola do cinema experimental.
Filme visto no Festival do Rio, em setembro de 2014.