A magia do realismo
por Bruno CarmeloA maior parte deste drama se passa num pequeno hospital tailandês ao lado da floresta. Na verdade, este não é um hospital, mas uma escola infantil, esvaziada para receber soldados doentes após o combate. A própria escola, por sua vez, foi construída em cima de um cemitério, onde se enterravam no passado os mais poderosos reis. Os monarcas, acredita-se, estariam usando a energia dos soldados inconscientes para prolongar suas batalhas no além. Numa mesma imagem, tem-se um hospital, uma escola, um cemitério, uma guerra real e uma guerra entre fantasmas.
Em Cemitério do Esplendor, nenhuma imagem possui apenas seu significado imediato: todo enquadramento esconde outras interpretações, que escondem mais algumas, e assim sucessivamente. Uma médium caminha pela natureza, descrevendo-a em detalhes como se fosse o palácio da imaginação de um soldado doente; canos luminosos posicionados ao lado dos leitos hospitalares simbolizam a energia e os sonhos dos pacientes; estátuas das deusas simbolizam as dores e traumas dos habitantes locais. Ao invés de apreender a realidade, o diretor Apichatpong Weerasethakul trabalha no domínio criativo da representação: as imagens podem ganhar significados muito distintos do referencial.
No caso, uma imagem realista pode adquirir um significado transcendental – aí se encontra a fascinação diante deste projeto tão singular. Assim como os soldados, suspensos entre a vida e a morte, o roteiro se desenvolve entre o natural e o sobrenatural, o banal e o mágico. Weerasethakul demonstra verdadeira fascinação pelo funcionamento do corpo, incluindo cenas com urina, fezes, ereções e cicatrizes vistas de perto. Aliás, estes momentos normalmente evitados no cinema são filmados com tanta atenção que incomodam, chamam atenção para si mesmos, tornando-se antinaturais. O cineasta observa a natureza com tanta atenção que até o corpo humano se transforma em objeto de apreciação mística.
Paralelamente, os enquadramentos fixos de Cemitério do Esplendor não transmitem a sensação de vazio ou imobilidade, pelo contrário. É impressionante a quantidade de elementos embutidos em cada quadro: Weerasethakul distribui objetos e personagens em profundidades diferentes da mesma imagem, de modo que figurantes podem efetuar uma ação em primeiro plano, enquanto a natureza se manifesta logo atrás (uma árvore se move, por exemplo), e nossa protagonista ajuda os soldados feridos lá no fundo do enquadramento. Mesmo sem movimentos de câmera, a riqueza de ações deixa o olhar do espectador livre para se concentrar onde bem entender. Neste filme, cada imagem é um banquete farto de elementos.
Esteticamente, Cemitério do Esplendor é deslumbrante, mas seu interesse não para por aí. O filme consegue apresentar um olhar crítico em relação ao imaginário ocidental das guerras (fala-se muito sobre o modelo exportado de heroísmo americano), apontando a ineficiência do governo local e o descaso com estes heróis abandonados, em leitos improvisados, precisando da caridade dos moradores para sobreviverem. Talvez o ritmo lento seja exigente demais para a maioria dos espectadores, mas o esforço traz sua recompensa: raros filmes conseguem ser tão simples em sua construção e tão complexos em seu significado.