Obrigado, Trump.
por Renato HermsdorffNão fosse a ascensão de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, Guerra dos Sexos soaria como um filme datado - mesmo se tratando de uma produção de época, ironicamente. Afinal, no filme, que recria eventos passados nos anos 1970, é possível ver um homem trajando uma camiseta com os dizeres "eu sou um macho chauvinista", algo impensável em 2017, não fosse... a ascensão de Donald Trump.
Ativista, a esportista em ascensão Billie Jean King (Emma Stone) compra um barulho danado com a associação dos tenistas quando se dá conta de que as mulheres recebem muito menos que os homens nas competições oficiais do esporte. E, para deixar claro seu argumento, organiza um campeonato paralelo só para elas.
Poderia ser em 2017 (a equiparação salarial entre os gêneros ainda está longe de ser uma realidade), mas estamos falando de 1972. Naquela época, a medida chamou a atenção de outro porco chauvinista, o tenista ex-campeão Bobby Riggs (Steve Carell), que, então, propõe uma disputa entre os dois. O que está em jogo, claro, vai muito além de um troféu. É o girl power que vai parar na berlinda, como o próprio nome do filme indica.
Aqui, os cineastas Jonathan Dayton e Valerie Faris trazem seu estilo leve e despretensioso de Pequena Miss Sunshine para abordar uma história, portanto, de forte pano de fundo feminista - e a favor dos direitos dos homossexuais também. Na forma, eles captam com deliciosa ironia os contrassenso de uma época em que tudo bem uma empresa de cigarros patrocinar uma competição esportiva; no conteúdo, desmontam o discurso hipócrita e neandertal da supremacia masculina.
O grande mérito da produção é que os realizadores levantam as bandeiras, mas não as chacoalham. Ou seja: as denúncias estão lá, mas sem julgamentos de valores e longe do discurso professoral.
Carell, por exemplo, assume um tom paradoxalmente adorável para o repugnante personagem (sabe aquele seu tio que parou no tempo, mas tem as tiradas mais engraçadas do Natal, apesar de preconceituosas?) Nenhuma novidade aí, é uma chave conhecida no registro de possibilidades dramáticas do ator, mas que ele sabe virar como ninguém. É uma relação quase perigosa a que se estabelece entre o personagem dele e o público. Mas a graça está justamente neste nível de complexidade.
Já Emma Stone é a verdadeira protagonista que conduz o filme. Billie Jean teve que lidar não apenas com o fato de ser considerada de um gênero inferior, mas também com a possibilidade de ver sua carreira ruir, implodida pelo preconceito, caso se tornasse pública a paixão repentina que desenvolveu pela cabeleireira Marilyn Barnett (Andrea Riseborough).
A carga dramática é aliviada no retrato pintado do marido de Billie, papel de Austin Stowell, como alguém que entende as prioridades da esposa, sem necessariamente aplaudir o comportamento dela que lhe afeta diretamente. Se foi assim a reação de Larry King na vida real, pouco importa. O que conta é que a abordagem cativa na medida em que evita os estereótipos.
Ainda assim, Battle of the Sexes (no original) se vale de uma dramaturgia convencional, esquemática mesmo. Se não surpreende, por outro lado, o faz da melhor maneira possível dentro do status quo de Hollywood. Um exemplo claro do "enquadramento" pode ser compreendido pela concepção da personagem de Sarah Silverman, a empresária Gladys Heldman. Exuberante na primeira metade da produção, ela é o típico "alívio cômico", ainda que dentro de uma comédia. Ainda assim, um papel irresistivelmente engraçado.
Guerra dos Sexos tem colhão suficiente para funcionar como uma divertida recriação de um inusitado episódio real por si só; mas o buraco desce ainda mais quando do lançamento em uma época em que o conservadorismo se fortalece. Em outras palavras: obrigado, Trump.
Filme visto no 42º Festival de Toronto, em setembro de 2017.