Filme gay para héteros
por Bruno CarmeloLogo na primeira cena deste drama, o casal Rose (Linda Emond) e Eddie (Tom Wilkinson) está discutindo a vida amorosa da filha Jenny (Katherine Heigl): por que ela nunca namora? Por que não se casa? Por que ainda não teve filhos? Ela não está velha demais para ser solteira? Este julgamento permeia todas as cenas, do início ao fim, sem questionamento. Casamento de Verdade apresenta, em primeiro lugar, uma defesa da obrigatoriedade social e moral de constituir uma família.
Mas Jenny é lésbica, e rejeita os rapazes empurrados frequentemente para ela. A jovem oculta sua orientação sexual, entretanto, diante da pressão familiar, acata a ideia de se casar – no caso, com a namorada Kitty (Alexis Bledel), com quem vive há cinco anos. Estranhamente, o espectador não descobre quase nada sobre Kitty, que possui poucos minutos em tela. A intimidade entre o casal também é inexistente: as garotas trocam dois beijinhos castos e mantêm três metros de distância uma da outra quando estão sozinhas dentro de casa. O roteiro quer que acreditemos no amor das duas apenas porque elas dizem estar apaixonadas. Esta é a mesma lógica das telenovelas em que casais gays não demonstram afeto para poupar a sensibilidade da família tradicional brasileira.
Isso ocorre porque o discurso do filme não é direcionado aos gays, e sim ao público heterossexual e conservador. Ao invés do ponto de vista de Jenny, enxergamos o mundo pelo olhar dos pais católicos e da irmã Anne (Grace Gummer), já devidamente casada. Casamento de Verdade é uma espécie de “filme para ensinar pais a suportarem a dor de ter um filho gay”. Ele supõe que a homossexualidade seja algo errado, necessitando da aprovação da maioria para existir. Rose e Eddie passam seus dias discutindo a orientação sexual da filha, e quando a verdade é revelada, têm piedade de si mesmos: Então não terei netos? Mas o que vou dizer aos vizinhos? Não existe maneira de convencê-la a mudar?
A narrativa discute incessantemente a legitimidade do amor de Jenny, mas confere pouco tempo para a própria Jenny se expressar. Sabemos pouco sobre seu trabalho, seus gostos, sua rotina. O que importa para a trama é sua sexualidade e seu comprometimento em ceder às regras cristãs. Neste filme, gays vivem corroídos por uma culpa inerente, por isso, são considerados “mentirosos” caso não abram o jogo sobre suas vidas afetivas. O coming out é visto como uma obrigação moral, muito próxima da prática católica da confissão. A comunidade LGBT, aparentemente, possui o dever de prestar contas ao resto do mundo sobre sua sexualidade e identidade de gênero.
Diante de temas tão complexos, o filme falha em todos os aspectos. Primeiro porque, ao falar de minorias, deixa-as como coadjuvantes para privilegiar o discurso da maioria. Segundo porque, embora pregue a aceitação (ou seria melhor dizer, a tolerância) em relação aos filhos gays, sustenta outras obrigações morais religiosas. Em outras palavras, não tem problema se sua filha for lésbica, contanto que ela se case, tenha filhos, entre na Igreja com um vestido branco e mantenha um lar tradicional. Este é certamente o filme pró-gay mais conservador que o cinema já recebeu. Aliás, o circuito brasileiro constitui uma exceção neste caso, já que o drama foi lançado diretamente em DVD em seu país e na maior parte do mundo.
Além dos defeitos flagrantes na representação da alteridade, Casamento de Verdade possui uma construção narrativa e estética bastante questionável. A diretora e roteirista Mary Agnes Donoghue cria cenas de um visual paupérrimo, abusando de planos e contraplanos, enquadramentos repetidos de Rose e Eddie discutindo na cama, trilha sonora indie pop forçadamente introduzida ao final de cada cena, montagem precária e engessada. Um álbum de família nos créditos finais revela uma qualidade de Photoshop digna dos memes caseiros da Internet, enquanto a cena da frustração de Jenny ao abrir um pacote de biscoito é risível. O filme privilegiou as boas intenções ao invés do domínio da linguagem cinematográfica.
Mas boas intenções não bastam para fazer boas obras. Casamento de Verdade representa uma oportunidade perdida de conferir voz e protagonismo aos indivíduos gays, lésbicas e transexuais. Ao invés disso, oferece um olhar moralista sobre a sexualidade alheia, transparecendo o desdém pela comunidade LGBT. A homossexualidade, neste caso, é tolerada como se aceitaria uma doença ou uma tragédia, num ponto de vista essencialmente preconceituoso. Não existe naturalidade em Jenny, em seu namoro, em seu amor. Ela é apenas uma figura pedagógica, imaginada por um roteiro desprovido de mínima intimidade com os temas que aborda.