A atualização do conceito de entretenimento
por Renato HermsdorffAgatha Christie não foi - e ao que tudo indica, nem tinha a pretensão de ser - uma das maiores romancistas de sua geração. A pegada da autora inglesa sempre foi outra: o entretenimento puro e simples, de apelo popular. E não há nenhum demérito na questão. Não à toa, vendeu milhões de livros no mundo todo. Ela escreveu mais de 80 títulos, muitos deles protagonizados por sua criação mais famosa, o detetive belga Hercule Poirot, de Assassinato no Expresso do Oriente (também transformado em filme em 1974, com Albert Finney no papel principal).
Como adaptar é “trair com amor”, o trabalho do cineasta Kenneth Branagh (especialista em Shakespeare e diretor de Thor) é irregular como o sentimento, mas bem-sucedido.
Porque, convenhamos, se é para transpor literalmente uma obra de uma mídia para a outra, melhor ficar no original. Aqui ele procura, sabiamente, atualizar o contexto de uma história lançada em 1934 (e que há mais de 40 não vê o frescor de um projetor) não só para a audiência dos dias atuais, como também para o modus operandi da Hollywood do século XXI. Para o bem e para o mal. Os puristas podem se incomodar. Mas Assassinato no Expresso do Oriente versão 2017 diz muito sobre como consumimos entretenimento hoje em dia.
A versão literária se passa quase que inteiramente dentro de um trem. A rigor, um assassinato acontece no percurso da viagem do Expresso do Oriente. Impossibilitados de seguir o caminho por conta de uma avalanche que bloqueia os trilhos, cabe ao detetive Poirot (Branagh) interrogar os 12 passageiros, das mais variadas idades e classes sociais, para tentar chegar a um veredicto sobre o (ou a) responsável pelo crime.
Originalmente, trata-se de um produto pouco cinematográfico, portanto. Ciente de seus desafios como cineasta, Kenneth Branagh posiciona a câmera nos mais variados ângulos. Seja com tomadas feitas do teto dos vagões ou abusando (no bom sentido) do traveling no meio de transporte longilíneo por definição, a imagem resultante é de uma criatividade que agrada aos olhos. (O plano-sequência dos personagens embarcando na estação é de fazer os fãs de cinema comemorarem como um gol).
Partindo do mesmo princípio, não são incomuns as cenas que se passam fora dos limites do trem - em meio à neve (que sempre fotografa bem, obrigado) ou na entrada do túnel sobre a qual o veículo não conseguiu avançar (onde Kenneth monta uma análoga "Santa Ceia" que nem o leitor mais dedicado de Agatha Christie seria capaz de imaginar).
Ainda no quesito “liberdades tomadas”, o roteiro assinado pelo experiente Michael Green (Logan, Blade Runner 2049) acrescenta uma historinha - uma espécie de prólogo - para dar conta de apresentar a personalidade… excêntrica de Poirot para uma plateia mais jovem. Ponto para a adaptação. O mesmo intuito pode ser notado com a adição de uma ou outra sequência de ação (tem tiro?), atitude um tanto forçada que, no entanto, não prejudica a experiência.
O texto falha ao introduzir um interesse amoroso para o policial sem desenvolvê-lo - independente da decisão de abrir o leque para a continuação da franquia (a “sequência”, Morte no Nilo, já foi anunciada). Ainda: se o livro tem como mérito oferecer cartesianamente as pistas para o espectador, o filme tropeça no desenvolvimento, que é um tanto videoclíptico. Confuso. Já o jeito estapafúrdico de Poirot é captado de forma bastante convincente por Branagh.
A grande (grande mesmo) diferença que o filme apresenta na comparação com o livro está na resolução (sem spoiler) da trama. Enquanto, nos anos 30, tudo se resolvia de forma mais simples, aqui (em 2017), não é bem assim que acontece. O filme acrescenta mais uma camada narrativa quando faz Poirot colidir de frente com um dilema moral. Se a problematização, em si, é bem-vinda, por outro lado, é executada de maneira emocionalmente apelativa (o que quer dizer genérica, dentro dos padrões de Hollywood). De fato, o mundo (do entretenimento, inclusive) era mais simples em 1934.