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    Pinta
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Pinta

    Corpos livres

    por Bruno Carmelo

    “Dublagens, dublês, remixes, covers estéticos. Difuso, descentralizado, periférico, embriagado. Tema: coreochanchada extemporânea. Contém: nu artístico, zoofilia discreta e dança”. Pinta começa com esta “classificação indicativa” lida por um narrador, e embora a descrição seja vaga, ela funciona perfeitamente para o filme. O diretor Jorge Alencar sabe que tem um objeto estranho e inclassificável em mãos, e exibe com orgulho o seu caótico balé de corpos.

    Talvez não exista uma narrativa ou linha condutora neste experimento episódico, mas como a interpretação do espectador sempre passa por algum esforço de ordenação, pode-se dizer de maneira geral que Pinta traz um alegre e livre estudo sobre o potencial criativo dos corpos. Alguns momentos podem ser facilmente descritos como dança contemporânea, porém com alterações sensíveis em relação a um espetáculo artístico comum: um dançarino faz um strip-tease em um beco, sem descolar o corpo do muro descascado; um dançarino se exercita no pole dancing, com uma sunga brilhante; um grupo executa uma coreografia dentro de uma piscina vazia, enquanto um rapaz tenta atravessar o palco com uma samambaia na cabeça.

    Outros momentos são mais obscuros, mas igualmente relacionados ao corpo: a luta fervorosa entre dois rapazes na sala de casa, o deslize de um patinador em um salão, o contorcionismo de uma mulher sendo molhada por uma mangueira, os movimentos das mãos de uma cozinheira em sua cozinha. Em comum, todos esses segmentos mostram pessoas movendo os seus corpos de maneira livre, irracional, pulsional, sem qualquer preocupação com regras morais ou narrativas. Somente a estrutura fragmentada poderia dar conta de um projeto tão plural, mas ao mesmo tempo tão coerente. Aliás, as frequentes acusações de aleatoriedade e heterogeneidade imputadas aos filmes episódicos não se aplicam aqui: a linguagem de Alencar é perfeitamente coesa, unificando as cenas pela fotografia e pelo som.

    A descrição do início faz uma referência à chanchada, e também seria possível apontar uma proximidade com a liberdade estética do cinema marginal. Mas ao invés de resgatar esses estilos de maneira saudosista e reacionária, o diretor as reinventa, recicla, adequa aos tempos modernos. Pinta consegue ser ao mesmo tempo erótico e leve, grotesco e respeitoso, popular e erudito. Alencar aplica uma composição rígida aos enquadramentos, à profundidade de campo, aos movimentos de câmera. Este é um raríssimo filme capaz de filmar genitálias sem fetichização, corpos sem idealização. As pessoas são comuns, os movimentos são banais, e por isso parecem tão orgânicos e verdadeiros.

    Uma belíssima cena resume bem a proposta artística deste filme. Uma tela verde aparece na imagem, com fios de cabelo voando de maneira intermitente pelo enquadramento. Aos poucos, a câmera se afasta e vemos uma travesti agitando a cabeça freneticamente, em frente à tela, posicionada simetricamente em um quintal qualquer. Baldes no chão e pregadores no varal compõem a cena. A sofisticação estética contrasta com a precariedade assumida do conteúdo, produzindo um efeito inovador, empolgante, criativo. Pinta é uma das maiores surpresas brasileiras deste ano, e resta torcer para que ganhe um merecido espaço no circuito comercial.

    Filme visto no Rio Festival Gay de Cinema 2014.

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