Fico me perguntando por que gostei tanto do filme “Hoje eu quero voltar sozinho”. Li algumas críticas na Internet, colhi impressões alheias e tentei juntar com o que senti.
Li uma crítica, por exemplo, em que o autor elege “delicadeza” como uma palavra que dá o tom do filme. Concordo. Mas gostaria de acrescentar outra: “naturalidade”.
Por que “naturalidade”? Porque acho que nessa característica residem também o segredo e o encanto do filme e dos seus personagens, que colhem fãs desde quando eram protagonistas de um curta-metragem veiculado em festivais de cinema e no YouTube, “Eu não quero voltar sozinho”.
A naturalidade está presente na abordagem de todos os temas do filme, basicamente: a adolescência, a descoberta do desejo sexual, a cegueira e a homossexualidade, tudo isso misturado cuidadosamente.
A homossexualidade é mostrada como algo que realmente é, ou seja, normal, natural, inerente à vida, ao ser humano, presente em uns, ausente em outros.
Não é gritada, escancarada, como uma resposta contundente e explícita à repressão e ao preconceito que vitimam aqueles que se interessam por pessoas do mesmo sexo (“Milk – A voz da igualdade”, por exemplo). Também não é abordada como algo escondido, pecaminoso, a ser curado, tratado, que provoca consequências funestas para aqueles que não conseguem se conter (como em “O segredo de Brokeback Mountain”).
É nisso que reside a naturalidade na abordagem da homossexualidade, nessa distância segura em relação aos dois extremos que costumam caracterizar as produções que se debruçam sobre o tema.
Há boas produções que se apoiam num desses polos, e é necessário que existam filmes assim para que possamos pensar sobre o assunto e concluir que o preconceito não tem sentido. Mas, aqui, nesse filme, “Hoje eu quero voltar sozinho”, o diretor optou por uma abordagem leve e espontânea que transforma seu filme numa obra-prima necessária e única.
Por isso mesmo, creio, devido à opção por uma abordagem leve, natural, descompromissada sobre a tormentosa questão da orientação sexual, o filme não abordou com profundidade a questão do bullying, da repressão explícita e violenta.
Melhor assim. A abordagem do preconceito, sempre (ou quase sempre) presente quando se fala de homossexualidade, é importantíssima e fundamental, mas já estava virando um lugar-comum nas ficções, e é bom ver que alguém decidiu quebrar as regras e focar-se basicamente no sentimento, no desejo, no nascimento da paixão.
O diretor optou por combater o preconceito, o bullying, a homofobia, a criminalização da homossexualidade na África, o projeto de lei que quer transformar orientação sexual em doença no Brasil em pleno século XXI, por vias transversas, distantes daquilo a que estamos acostumados: não na base dos gritos e das bandeiras, mas sim na base das risadas (do filme e do público) e dos beijos.
Do mesmo modo, a cegueira foi mostrada de forma natural. O drama, que é terrível, claro, não foi mostrado com tintas fortes, carregadas. Optou-se por uma abordagem serena da vida de um adolescente que, acima de ser cego, é adolescente, e sente todos os desejos comuns aos da sua idade: a vontade de dar o primeiro beijo, de sair de casa, de descobrir o mundo...
Essa abordagem tão sincera da adolescência me trouxe a deliciosa lembrança dos livros de Pedro Bandeira e de seus adolescentes capazes de mudar o mundo com a força dos seus sentimentos e com a sua vontade de viver (os Karas, Telmah, Mariana...).
Surpreende a inteligência do desenvolvimento da história contada no curta-metragem. No curta, tínhamos uma história mais simples, singela, mas que já sugeria inúmeras possibilidades de desenvolvimento e aprofundamento. No longa, aparecem o desejo sexual, os palavrões, o álcool, os conflitos familiares.
E ambos, curta e longa, cada qual a seu modo, são retratos realistas e sinceros da adolescência e das questões que, nessa fase, afligem tanto os jovens homossexuais quanto heterossexuais, ou bissexuais.
Li em um texto na Internet que a história de Leonardo é universal. É um garoto cego, mas suas descobertas, seu desejo de conhecer e experimentar, não são só dos cegos, são de todos (será que todos não somos cegos, cada um à sua maneira?). É homossexual, descobre-se homossexual, mas suas dificuldades de lidar com o que sente são de todos os adolescentes. Aliás, para que servem tantos rótulos, mesmo?
Vale ressaltar que os demais personagens do filme, amigos, colegas, família, são todos igualmente perfeitos e se parecem com pessoas que conhecemos, que já vimos, com situações que enfrentamos, e até com nós mesmos. Tudo muito natural. Acima de verdadeiro ou realista, natural, como se não houvesse sido exaustivamente ensaiado, lido, relido, repassado, treinado, como se tudo existisse por conta própria.
Claro, há ainda o encanto de assistir a um filme independente, deslocado do circuito comercial dos blockbusters e da Globo Filmes. Eu gosto de alguns filmes comerciais, não vou negar, mas é tão bom nadar contra a corrente...
Se esse filme fosse da Globo Filmes, não seria derivado de um curta, porque a Globo Filmes não faz curtas, não têm apelo comercial. Não teríamos duas versões diferentes da mesma história, não teríamos tamanha homenagem à criatividade.
O título não seria derivado do título de um curta. Não poderíamos pensar que a supressão do “não” do título do longa se justifica pelo desejo de Leonardo de se autoafirmar, de aprender a ficar sozinho, sem depender de ninguém. Aliás, o título não seria tão rico, seria uma bobagem qualquer, como “O amor não é cego”, por exemplo.
Não teríamos caras novas no elenco jovem, teríamos atores da Malhação. Teríamos veteranos globais nos papéis da família e seus nomes, nos créditos, teriam destaque colossal sobre os nomes dos jovens, incluídos na categoria ridícula de “apresentando”.
Teríamos a divulgação de um vídeo na Internet, com cenas calientes do namoro gay, captadas às escondidas, e talvez um processo judicial de indenização, com direito a cenas num Tribunal, coroadas com os tradicionais erros jurídicos, e protagonizadas por um juiz que seria interpretado por um veterano global.
Teríamos um filme recheado de tablets, smartphones, automóveis, tênis à mostra, a serem focalizados em close, mesmo quando a cena não pedisse esses closes, para que as marcas patrocinadoras pudessem aparecer devidamente. Teríamos cenas nas telas do computador, Facebook, curtidas, trollagem, Twitter, hashtags e todo esse horror.
Não duvido de que, no final, um médico jovem, interpretado por algum galã global, apareceria com um remédio que poderia trazer a cura à cegueira de Leonardo.
Enfim, não teríamos beijo gay, “para não chocar o público” que não está acostumado com demonstrações de carinho entre pessoas do mesmo sexo. Ou seja, se o filme fosse da Globo Filmes, esse filme não seria “Hoje eu quero voltar sozinho”.
Gostaria de fazer uma comparação com outro filme nacional excelente que também aborda a adolescência, "As melhores coisas do mundo". Esse apresenta uma abordagem diferente, que transmite a noção de que a escola pode funcionar como um espaço para a construção da política e da cidadania. A homossexualidade aparece como tema secundário, ao lado de outros extremamente relevantes, e o filme dá uma resposta contundente ao bullying e a toda essa barbárie e ignorância chamada homofobia.
Filme excelente, claro, que guarda com "Hoje eu quero voltar sozinho" a semelhança na abordagem genuína, terna e cômica da adolescência e seus conflitos. No entanto, ainda prefiro o filme de Daniel Ribeiro, que se debruça tão somente sobre a história que está contando e sobre a explosão de hormônios de uma fase única na vida, sem qualquer outra questão adjacente.
Por fim, quero ressaltar o óbvio: o trabalho competente e comovente do diretor e dos atores. É espantoso ver que atores jovens são dotados de tamanho talento, que conseguem se entregar de forma tão intensa à construção de personagens críveis e cativantes e desempenham um trabalho que vai muito além das caras e bocas que vemos numa "Malhação" da vida, e que nos dão vontade de vomitar.
É gratificante ver que um diretor também jovem compreende tão bem os anseios dos adolescentes e consegue enxergá-los com tanta riqueza e profundidade, construir um filme que é todo drama, comédia, carinho, descobertas, deslumbramento, ternura e amor.